Ativismo judicial

AutorEduardo Marques Vieira Araújo
Ocupação do AutorProfessor da Universidade Federal de Minas Gerais. Especialista em Direito e Processo do Trabalho. Analista Judiciário do TRE-MG. Mestre em Direito pela UFMG
Páginas197-208

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1. Introdução

A revolução copernicana que se empreendeu sobre o Direito Constitucional após a 2ª Guerra Mundial inaugurou o período que a literatura jurídica consagrou como pós-positivismo. Nesse contexto, as Constituições passam a consubstanciar em seus textos a própria atividade política do Estado, mediante o estabelecimento dos direitos fundamentais, bem como os mecanismos para sua concretização1.

A conexão atualmente existente entre Direito e outras áreas do saber, verbi gratia, moral, ética e política, promoveu uma transformação profunda na concepção do fenômeno da normatividade e no seu necessário processo hermenêutico.

A temática do ativismo judicial emerge nessa quadra da história constitucional. Trata-se de seara extremamente nebulosa, posto que os teóricos que se arriscaram a enfrentá-la ainda não se apresentam uníssonos sobre a extensão do ativismo, bem como sobre a sua possibilidade jurídica frente ao princípio da separação dos poderes.

O presente trabalho, embora não tenha como pretensão esgotar a investigação sobre todas as questões que circundam o ativismo judicial, visa ao enfrentamento de problemas que instigam a reflexão.

2. Delimitações metodológicas do tema "ativismo judicial"

Prefacialmente, cumpre consignar que o ativismo judicial pode ser enfrentado sob as perspectivas material e processual, embora a doutrina que se dedica ao assunto, em regra, reserve-se a perquirir tão somente a primeira modalidade. Todavia, as posturas do juiz na direção do processo judicial também podem ser estudadas no seio da perspectiva ativista, quando desvelada em sua essência.

Conforme sintetiza Evandro Gueiros Leite, o ativismo consubstancia um princípio jurídico que "condiz, pois, com a contextualidade do Direito Processual Civil, no pertinente à atividade jurídica e à ação judiciária: atuação de um Poder (política); função do jus dicere (finalidade); processo e organização (instrumentalidade)"2.

Nesses termos, discute-se o espectro de possibilidade de que goza o juiz na direção dos processos judiciais, ou seja, na determinação dos atos que deverão culminar no provimento jurisdicional.

Sabidamente, o juiz não poderá proceder à margem da instrumentalidade do processo. A processualística já não comporta mais elevar ao centro polêmicas referentes à concepção abstrata da ação. Deve-se buscar, neste ensejo, a construção de um sistema jurídico-processual apto a conduzir o aparato

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jurisdicional aos resultados práticos desejados3.

Noutras palavras, calha perscrutar um modelo processual voltado à finalidade do Direito, que é concretizar o acesso à ordem jurídica justa4.

As clássicas máximas do Direito Processual estão, desse modo, intrinsecamente enlaçadas com a efetividade do direito material objeto do conflito. O desiderato a ser alcançado mediante o processo não é o provimento jurisdicional simplesmente, mas a entrega do bem da vida solicitado ao litigante que tem razão. O processo é tão somente um método para se alcançar a ordem jurídica justa, dando a cada um aquilo que lhe é devido.

Como é de sabença comum, o juiz não pode se eximir de atuar no processo, tendo vista o princípio da vedação ao non liquet, encampado constitucionalmente no corpo da garantia da inafastabilidade da jurisdição5. Para desincumbir-se desse ônus, o Direito lhe atribui uma série de poderes, administrativos e jurisdicionais, a serem exercidos na condução do processo6.

Os poderes jurisdicionais, subdivididos em ordinatórios, instrutórios, decisórios e de execução, são, concomitantemente, deveres do magistrado. O juiz não tem apenas o dever de sentenciar, senão ainda o mister de conduzir o processo em consonância com os ditames da ordem jurídica, propiciando às partes amplo diálogo e participação7.

O exercício dessa atribuição, necessariamente, legitima-se por meio de uma conduta ativa do juiz, que mantenha imaculada a sua imparcialidade. Afigura-se plenamente possível se empreender tal conduta sem que se coloque em xeque o basilar postulado da imparcialidade. O atuar imparcial do magistrado não pressupõe seu afastamento do conflito e sua inércia diante do desenrolar processual. Aliás, o juiz não deve mais conformar-se em ser um mero espectador do processo, mormente se rememorado que é ele um sujeito da relação processual, compromissado com a realização da Justiça.

Na esteira desse raciocínio, a direção ativa do feito não se incompatibiliza com o princípio da imparcialidade. O juiz, portanto, detém a prerrogativa de determinar, ainda que de ofício, atos e diligências que sejam adequados à formação de seu convencimento motivado. Dotado dos instrumentos necessários, o juiz pode, durante o processo, alcançar a verdade real, pressuposto para a Justiça.

A parcialidade do magistrado se evidencia em situações de favorecimento infundado a uma das partes em seus juízos de valoração dos fatos e das provas. Mas essa hipótese não se confunde com a participação ativista do juiz na formação de sua convicção.

Ressalte-se, ainda, que a leitura dinâmica dos princípios constitucionais que regem a matéria processual permite a edificação de uma nova visão sobre o papel do processo. Fomentando-se a participação diretiva do juiz e a intersubjetividade deste em relação às partes, assegurada estará a função problematizante do processo jurisdicional8.

Sob os auspícios do princípio da duração razoável do processo e da novel acepção da ideia de acesso à justiça como efetividade, o magistrado deve prestigiar a verdade real e conduzir o processo em atenção a essas finalidades. Logicamente, a atitude "ativista" do juiz deve se dar com respeito a todas as garantias processuais deferidas constitucionalmente aos litigantes.

Noutro giro, na concepção material, sobre a qual este estudo se debruçará com mais profundi-dade, o ativismo judicial pode ser definido como "uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance"9.

Assevera o renomado constitucionalista Luís Roberto Barroso que, via de regra, o ativismo tem lugar em contextos de retração do Poder Legislativo, em face de um certo "descolamento entre a classe política e a sociedade civil", que obstaculizam a efetivação das demandas e expectativas sociais. Está

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associado a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, propiciando uma maior intervenção no espaço tradicionalmente reservado aos outros dois Poderes10.

Barroso elenca algumas atitudes do Judiciário que exteriorizam a adoção de uma postura ativista, a saber:

I - a aplicação direta da Constituição a hipóteses não expressamente contempladas, independentemente de manifestação do legislador ordinário; II - a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; III - a prescrição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas.11

Ao revés, condutas que representam um atraso na consolidação dos preceitos constitucionais (ativismo negativo ou às avessas) consubstanciam uma posição de self restraint, que, segundo Streck, denuncia uma operacionalidade da justiça constitucional brasileira decorrente da baixa constitucionalidade12.

Essa postura tem nítido cariz neoliberal, posto que impede a concretização dos direitos sociais preconizados pela Constituição.

Ainda para Barroso, "a judicialização e o ativismo judicial são primos", mas se diferenciam de forma clara13. Enquanto o ativismo concebe-se como uma postura proativa do magistrado perante a Constituição, decorre a judicialização de três fatores, basicamente: a redemocratização do país, a abrangência da Constituição e o modelo amplo de controle de constitucionalidade adotado, que é híbrido e comporta ação por numerosa gama de legitimados. Corresponde a um fato, a uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não a um exercício deliberado de vontade política14.

3. Neoconstitucionalismo aplicado

O que caracteriza esse novo modelo constitucional pode ser didaticamente delimitado em três marcos, quais sejam, o histórico, o filosófico e o teórico.15

O marco histórico do presente constitucionalismo é o segundo pós-guerra, cujos traumas também produziram consequências para o Direito. No Brasil, especificamente, a Constituição de 1988 emergiu como evento decisivo para promover a travessia de um modelo estatal autoritário para um Estado Democrático de Direito.16

O segundo marco é filosófico, pós-positivista, que consubstancia uma nova perspectiva de esquadrinhamento do ordenamento jurídico e de comportamento perante suas normas. O pós-positivismo, atento à normatividade dos princípios, reaproxima Direito e Filosofia, pelo que não se resume à legalidade estrita, embora outrossim não a despreze17. Nesse contexto, a argumentação jurídica robustece-se, adquirindo contornos específicos e passando a incorporar a teoria dos valores (axiologia)18.

Por fim, o marco teórico é a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional (os tribunais passam a ter o papel de protagonistas na concretização dos direitos fundamentais) e a hermenêutica constitucional, revigorada por uma revolução metodológica e...

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