Aspectos Transnacionais da Luta Contra a Violência Doméstica e Familiar no Brasil

AutorMarcia Nina Bernardes
CargoPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro-RJ, Brasil
Páginas119-144
Aspectos Transnacionais da Luta Contra a
Violência Doméstica e Familiar no Brasil
Marcia Nina Bernardes*
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro-RJ, Brasil
1. Introdução
A Lei Maria da Penha (Lei n º11.340/06) recebeu esse nome em homena-
gem à cearense que sobreviveu a duas tentativas de assassinato1, cometidas
por seu então marido. Depois de 15 anos sem o trânsito em julgado da sen-
tença condenatória do agressor, apesar das robustas provas constantes do
inquérito, seu caso foi enviado à Comissão Interamericana de Direitos Hu-
manos (CIDH), que, em 2001, recomendou ao Brasil, dentre outras ações,
1 Pref‌iro o termo “assassinato” a “homicídio” para designar a morte violenta de mulheres em razão do seu
gênero. O termo homicídio, neutro da perspectiva de gênero, serve para invisibilizar o patriarcado e a
gravidade da violência contra a mulher. Por essa razão, discute-se hoje um projeto de lei que visa a criar o
conceito de “feminicídio”, que deixa claro o componente patriarcal. Ver: BRASIL. Senado Federal. Projeto
de Lei do Senado (PLS) 292/2013. Altera o Código Penal, para inserir o feminicídio como circunstância
qualif‌icadora do crime de homicídio. Disponível em: .br/atividade/materia/
detalhes.asp?p_cod_mate=113728>. Acesso em: 29 jul. 2014.
Direito, Estado e Sociedade n.45 p. 119 a 144 jul/dez 2014
* Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio. Coordenadora Acadêmica do Núcleo
de Direitos Humanos do Departamento de Direito da PUC-Rio. Doutora em Direito pela New York
University (2007), Mestre em Direito pela New York University (2001). Mestre em Direito pela PUC-Rio
(2000). Hauser Global Scholar (NYU Law’01). E-mail marcianb@puc-rio.br
Agradeço imensamente a todas as colegas e alunos do Grupo de Pesquisa Gênero, Democracia e Direito
da PUC-Rio, inscrito no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq, em especial a Adriana Vidal e Rodrigo
Costa, pelas muitas indispensáveis discussões sobre violência contra a mulher. Agradeço ainda a Mariana
Imbelloni Braga, pela colaboração na formatação f‌inal do texto, e a Ela Wiecko Wolkmer de Castilho e
Rosane Reis Lavigne, pelas muitas informações e críticas sobre o processo de elaboração da Lei Maria da
Penha e sobre a sua atual implementação. Por f‌im, gostaria de agradecer ao Conselho Nacional de Pesquisa
(chamada 32/2012) e FAPERJ (Programa Jovem Cientista do Nosso Estado) pelo fomento que me permitiu
a elaboração do presente artigo.
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a reforma de seu sistema legal de modo a permitir ações judiciais mais
céleres e ef‌icazes no combate a este tipo de agressão. Esse caso contribuiu
para o contexto que facilitou a elaboração e a promulgação da nossa famosa
lei para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, além de
ser paradigmático no direito internacional também por ter sido o primeiro
em que se aplicou a Convenção Interamericana para Prevenir, Erradicar e
Punir a Violência contra Mulher (Convenção Belém do Pará ou CVM).
Neste artigo, pretendo articular duas histórias já agora conhecidas
para revelar dinâmicas transnacionais que podem ter implicações im-
portantes em termos de inclusão política de grupos vulneráveis. A primei-
ra história narra o trâmite do caso 12.051 (Caso Maria da Penha Maia
Fernandes) diante da CIDH e a segunda reconstrói o processo de elabo-
ração e promulgação da Lei Maria da Penha. A articulação entre essas
duas histórias, a partir do conceito de esfera pública transnacional, nos
permite vislumbrar estratégias dos movimentos sociais que aumentam
as chances de o Estado absorver suas reivindicações de forma ampla.
Estratégias transnacionais potencializam dinâmicas típicas das democra-
cias, que Nancy Fraser chamou de ampliação do sentido de “interesse
comum”, ou seja, o processo através do qual um tema, como violência
doméstica, deixa de ser considerado privado, de interesse apenas de um
pequeno grupo diretamente afetado, e passa a ser de interesse público,
gerando uma agenda política que é incorporada pelo Estado2. Tais estra-
tégias pressupõem um processo pedagógico de tomada de consciência
dos atores relevantes, sejam eles estatais ou não estatais, e de aumento
da pressão política sobre os atores estatais não democráticos. Parte-se de
uma concepção de Estado (e de sociedade civil) como “um conjunto de
instituições diferenciadas que, dependendo do contexto político, podem
expandir ou restringir o reconhecimento dos direitos das mulheres”3.
O reconhecimento do pluralismo no Estado corresponde a novas con-
cepções de soberania, percebida como mais f‌luida e desagregada, e não
como una e indivisível4.
2 FRASER, 1996, p. 128-29. Cecilia MacDowell Santos nos lembra que “na segunda metade da década
de 1990, dois casos foram encaminhados à Comissão Interamericana de Direitos Humanos: o caso Márcia
Leopoldi, em 1996; e o caso Maria da Penha, em 1998”. (SANTOS, 2010: 153-170). Sobre Marcia Leopoldi,
ver CIDH Informe 9/12, em que a CIDH considerou o caso inadmissível, nos termos do art. 47,b, da CADH.
3 SANTOS, 2010, p.154-155.
4 SLAUGHTER, 2004.
Marcia Nina Bernardes

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