As transformações das relações de trabalho por meio da tutela coletiva: análise de casos paradigmáticos

AutorJoão Batista Martins César
Ocupação do AutorMestre em Direito pela Unimep. Desembargador no TRT 15ª, em vaga destinada ao quinto constitucional (MPT)
Páginas123-145

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Apesar da consagração dos direitos fundamentais dos trabalhadores na Constituição Federal brasileira de 1988 — art. 7º —, em muitos casos eles ainda não são respeitados, em razão de toda sorte de subterfúgios e fraudes.

As técnicas de solução de conflitos coletivos são usadas para reverter esse quadro de desrespeito aos direitos fundamentais dos trabalhadores, fazendo-o com galhardia, conforme será demonstrado a seguir com a análise de alguns casos paradigmáticos.

3.1. Cooperativas de mão de obra

A Lei n. 8.949/94 inseriu o parágrafo único no art. 442 da CLT para constar que “qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviços daquela.”

Fica aparentemente claro que essa alteração não revogou os arts. 2º e 3º daquela Norma trabalhista — que estabelecem os elementos da relação de emprego — e tampouco o extenso rol dos direitos dos trabalhadores previstos no art. 7º da Constituição Federal de 1988.

Mesmo assim foram criadas inúmeras cooperativas de intermediação de mão de obra — urbanas e rurais —310, esquecendo-se seus fundadores/ proprietários de que o trabalho humano não é mercadoria, conforme prevê a OIT — Organização Internacional do Trabalho.

Essas cooperativas eram utilizadas como um instrumento para obstar a aplicação da legislação laboral, impedindo que os trabalhadores gozassem de todos os direitos decorrentes do vínculo empregatício311; luzidio, portanto, o prejuízo dos obreiros.

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Diante da proliferação de um grande número de cooperativas fraudulentas, foi criado no âmbito da PRT/Campinas, por meio da Portaria n. 47, de 4 de setembro de 2000, um Grupo Especial de Trabalho com o objetivo de investigar as denúncias. Foram instaurados procedimentos investigatórios para apurar as fraudes; inúmeros TACs foram firmados; e várias ACPs foram ajuizadas.

Nas investigações ficou provado que não existia a affectio societatis porque a filiação era requisito obrigatório à obtenção do trabalho; se não fosse cooperado, não era contratado pela empresa. Esta normalmente fazia a seleção do trabalhador e depois o encaminhava para a associação. A filiação era compulsória, inclusive com assinatura de documentos em branco, provocando um sentimento de revolta e impotência nos trabalhadores, os quais “aderiam” em razão do desemprego e das dificuldades financeiras. Os obreiros não sabiam qual o verdadeiro significado do trabalho cooperativo; invariavelmente, quando perguntados, afirmavam que preferiam trabalhar como empregados a cooperados.

Nos depoimentos, os trabalhadores asseveravam que não conheciam a sede da cooperativa, não participavam de assembleias, não elegiam seus diretores — sequer os conheciam — e somente tomavam conhecimento da cooperativa após o início do trabalho. Também desconheciam se a cooperativa auferia lucro e não recebiam qualquer outro benefício além do trabalho oferecido e a contraprestação paga. A fixação do preço do serviço era feita pelos “diretores” da cooperativa, sem qualquer ingerência dos trabalhadores; a remuneração era fixa, não sofrendo variações em razão de aumento de produção. Além disso, não tinham qualquer autonomia e havia superiores hierárquicos — funcionários registrados pelas tomadoras —, cujas funções eram a de controlar a jornada e aplicar punições.

Em muitos estabelecimentos, os “cooperados” eram os antigos empregados, que de um dia para outro passaram a ser “autônomos” e gerindo novos obreiros com as mesmas condições de trabalho, mas com jornada maior e contraprestação remuneratória inferior àquela que percebiam quando registrados em CTPS.

Esse quadro de “cooperfraude” foi encontrado em inúmeras investigações do MPT-PRT da 15ª Região, conforme se apreende das informações a seguir:

  1. Inquérito Civil n. 085/2001. PRT 15ª Região. Investigadas: Coopermetal
    — Cooperativa de Trabalho dos Profissionais Metalúrgicos — e Induscar
    — Indústria e Comércio de Carrocerias Ltda. A empresa Caio, substituída pela Induscar, possuía mais de mil empregados, que passaram a ser cooperados. Foi proposta ação civil pública por meio do processo n. 0148500-57.2001.5.15.0025 — procedimento de acompanhamento judicial

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(PAJ) da PRT15 n. 001025.2001.15.000/9-09. Na audiência judicial, foi feito um acordo com a anotação da CTPS dos trabalhadores.312313b) Inquérito Civil n. 90/2000. PRT15. Investigadas Coserge — Cooperativa de Trabalho Multiprofissional de Lucélia — e Banco do Brasil S/A. Envolvia centenas de trabalhadores, sendo que referida instituição financeira contratava prestadores — auxiliares de limpeza e ascensoristas — pela cooperativa. Ajuizada a ACP — Processo n. 0166900--28.2000.5.15.0002 —, os pedidos foram acolhidos.314c) Inquérito Civil n. 000051.2001.15.001/1-07. PRT15. Investigadas Coomoc — Cooperativa de Trabalho Multiprofissional de Osvaldo Cruz —, GS Plásticos Ltda., Confecções Detex Ltda. e outras. Nos autos da ACP — Processo n. 0076400-72.2001.5.15.0068; PAJ 000004.2001.15.005/ 1-60 — foi celebrado acordo judicial.315d) Inquérito Civil n. 396/98. PRT15. Investigada: Cooperativa de Trabalho dos Trabalhadores Autônomos de Araraquara e Região; Coopersol e vários produtores rurais da região. Proposta ação civil pública — n. 0132300--38.2008.5.15.0151. 3ª VT de Araraquara. PAJ n. 000005.2000.15.003/0--52. Os pedidos foram acolhidos.316

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As cooperativas da área rural intermediavam mão de obra para produtores, lesando milhares de rurícolas que não recebiam direitos básicos, sequer salário mínimo. Em razão desse trabalho de combate à intermediação de mão de obra por cooperativas no meio rural, e após a realização de inúmeros seminários e audiências públicas com a sociedade, o MPT teve participação decisiva para que fosse regulamentado o consórcio de produtores rurais.

O consórcio de empregadores rurais foi uma ideia nascida no Estado do Paraná.317 Por meio desse sistema, vários empregadores rurais consorciam-se e contratam seus trabalhadores com anotação em CTPS e garantia de todos os direitos trabalhistas. A principal diferença é que os trabalhadores prestam serviços pelas diversas propriedades dos consorciados, de acordo com a sazonalidade da safra, racionalizando-se o uso da mão de obra. Para os empregados, a vantagem é a observância da legislação trabalhista, acrescida da solidariedade passiva dos produtores, no caso da existência de débitos trabalhistas.

No início, os órgãos públicos não aceitavam o consórcio como empregador rural, exigindo que os recolhimentos do INSS fossem efetuados como de empregador urbano, o que encarecia o custo da mão de obra.318O Parquet Laboral exerceu seu papel de articulador social e, em 24 se setembro de 1999, foi firmado na PRT da 15ª Região o que se convencionou chamar “Pacto Rural de São Paulo”, estabelecendo-se as bases para a implementação do consórcio de empregadores.

Em seguida, o INSS expediu a Circular n. 56, de 25 de outubro de 1999, admitindo a figura do consórcio de empregadores e estabelecendo os requisitos para a matrícula junto àquele Órgão.

Por meio da Portaria n. 1.964, de 1º de dezembro de 1999, o Ministério do Trabalho e Emprego reconheceu a possibilidade do consórcio de empregadores rurais.

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Após esse trabalho, foi promulgada a Lei n. 10.256, de 9 de julho de 2001, que disciplinou a figura do consórcio de empregadores, ao instituir o art. 25-A da Lei n. 8.212/91.319Essa nova figura jurídica possibilitou a abertura, no Estado de São Paulo, de mais de trezentos mil empregos no campo.320

3.2. Falsa parceria agrícola

Outro tipo de fraude eficazmente combatida pelo MPT foi aquela adotada pelos produtores de tomate estabelecidos na região de Itapeva, interior de São Paulo. Para fugir da incidência da legislação trabalhista — arts. e da CLT —, eram celebrados falsos contratos de parceria agrícola, baseados no art. 1.410 do antigo Código Civil brasileiro.321A fraude foi confirmada com diligências realizadas na região, apurando-se inclusive a prática do truck-system. Deu-se início a um trabalho para reverter esse quadro de flagrante prejuízo aos trabalhadores rurais, que não recebiam os direitos mínimos fixados na Lei Maior.322323

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Realizaram-se audiências públicas na região324 para esclarecer a necessidade do cumprimento da legislação trabalhista. Seguiram-se inúmeras diligências para constatar as condições de trabalho325, celebrando-se dezenas de TACs326 e disciplinando a contratação dos trabalhadores rurais com o respeito das garantias mínimas.327Nos casos em que houve recusa de celebração do TAC, foram propostas ACPs, com pedido condenatório de obrigação de fazer — observância da legislação trabalhista.328Os termos de compromissos descumpridos foram executados, importando em altas cifras, conforme se pode perceber dos autos do Processo
n. 0022900-57.2000.5.15.0123 da Vara do Trabalho de Capão Bonito — PAJ
000008.2000.15.008/3-21 —, no qual foi celebrado acordo envolvendo o importe de um milhão de reais, canalizado para a construção do Fórum Trabalhista daquele município, bem como para aquisição de veículos aos órgãos públicos que atuam no combate às irregularidades trabalhistas.329A situação melhorou bastante na região após esse trabalho, sendo que em diligências realizadas no ano de 2008 não foram encontradas as falsas parcerias agrícolas, sendo que os trabalhadores rurais eram contratados como empregados. Iniciou-se um trabalho de...

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