As Relações entre os Modelos de Estado e a Ingerência na Vida Socioeconômica.

AutorAntonio Augusto Cruz Porto
Páginas60-97

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A gradativa evolução do Estado dessume que a relação entre a interferência estatal na atividade econômica e a letargia do Poder Público frente às vicissitudes do mercado forrou-se de variados aspectos e amplitudes de atuação, a depender do cenário político, social e econômico existente na respectiva época de análise desse quadro comparativo.

O mercado - aqui abstratamente caracterizado por uma conjuntura de variadas relações entre os agentes econômicos

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- e o Estado103- concebido como o ente governamental em sentido amplo, representado por três clássicas esferas de poder (Executivo, Legislativo e Judiciário) - ao longo do tempo aparentam gerir interesses absolutamente antinômicos, de maneira que se percebe a existência de uma tênue linha que separa os anseios capitalistas de obtenção do lucro e o grau de ingerência do Estado na atividade econômica tendente a preservar o interesse público104.

Avaliar o estreito ponto de contato dos interesses estatais e mercadológicos, de modo a permitir que a relação entre essas esferas mantenha-se em constante e equilibrado diálogo, é tarefa das mais árduas e, certamente, das mais complexas105.

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Houve o tempo em que o Estado era considerado Liberal106, pautando-se, por conta de uma construção histórica específica, em uma percepção absenteísta, não intervencionista na esfera de direitos individuais. É que, à época, a permitir a ascensão da classe burguesa, para quem as relações comer-ciais traziam bons frutos financeiros, imprescindia a positivação constitucional de direitos e garantias individuais que resguardassem o cidadão do arbítrio do Estado, realçando os conceitos de racionalidade econômica salvaguardada pelo direito positivado. Eis que sobrevém a necessidade de o Ente Público tornar-se invisível aos comandos dos negócios privados, em favor da progressão do comércio107.

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A Revolução Industrial, por sua vez, lançou ao mercado uma massa de trabalhadores que em grande parcela não era atendida pelos mecanismos produtivos, ficando ao largo dos postos de trabalho. O incremento tecnológico nos parques industriais torna tensa a relação social entre detentores das forças produtivas e proletariado. A industrialização retira as pessoas do campo levando-as aos centros urbanos, intensificando a busca pela ocupação de um espaço de trabalho108.

Com o advento da Primeira Guerra Mundial, intensificam-se os problemas sociais e a abundante produção gerada pelo progresso industrial não é, na mesma medida, abarcada pelo mercado consumidor. Como resultante dos crescentes gastos tencionados a suprir a infinita necessidade bélica, despesas que se somam aos problemas decorrentes da destruição dos países europeus participantes do primeiro embate mun-dial - fator a engendrar, a propósito, um redimensionamento físico-político das nações Europeias e a amontoar pessoas sem absorção pelo mercado -, uma massa de produtos não consegue ser escoada para a cadeia de consumo, já arrefecida pelos desgastes econômicos.

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Bem se vê, em breves palavras, os ingredientes primários a ensejar um momento de crise econômica. E foi assim, logicamente em apertada resenha e a par de consideráveis lacunas, que se ouviu o estalido do crack da Bolsa Americana em 1929.

Fábio Konder Comparato esclarece as mudanças derivadas daquele momento histórico:

A crise de 1929, colhendo de improviso as economias nacionais que mal se recompunham das consequências da grande guerra, e espraiando largamente seus efeitos sobre as economias coloniais periféricas, representou o verdadeiro dobre de finados do clássico laissez faire. Diante da paralisia quase total dos fatores de produção - diminuição do valor do comércio internacional da ordem de 60%, baixa dos preços internos de 30%, baixa na cotação das ações em Bolsa de 75%, desemprego em massa (25% da mão de obra ativa nos Estados Unidos), multiplicação de insolvência - a tradicional ausência de iniciativa econômica pública não tardou a desaparecer. A posição estatal de simples árbitro do respeito às regras do jogo econômico não tinha mais razão de ser, desde o momento em que os diferentes protagonistas deixavam de jogar. A se porfiar no otimista laissez faire, ter-se-ia na prática um laissez ne pas faire. Incumbia a alguém reimpulsionar a máquina econômica paralisada, e este alguém só poderia ser o Estado.109Desse tenso conflito de classes e como resultado de um surto de massas populacionais desempregadas, o Estado se põe em posição de mudança. As reformas foram inevitáveis na tentativa de preservar minimamente a dignidade do homem. Então, o chamado Welfare State (Estado Bem-estar) traz ao seio estatal a constitucionalização110de normas-pro-

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grama de conteúdo puramente social, encampando a inter-venção111massiva e maciça em setores-chave da sociedade a permitir a consecução de garantias assistencialistas nos campos educacional, de saúde, habitação e de seguridade. Da Europa112aos Estados Unidos113essa mudança de concepção foi percebida114.

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Assumir inúmeras funções assistencialistas encarrega o Estado de cumpri-las. A carga de tarefas não vem desacompanhada da necessidade de estruturar-se a Administração Pública, formatando-a de modo a viabilizar o alcance das metas programadas pela Constituição, certamente impactando o orçamento público de modo a sobrecarregá-lo115. Manoel Gonçalves Ferreira Filho116destaca, particularmente no cenário político-constitucional brasileiro pós-1988, a verificação de uma crise de sobrecarga da máquina estatal, ao assumir demasiadas funções paternalistas sem que, para tanto, se adorne de arquitetura administrativa e orçamentária viável para delas dar cabo.

Reflete-se, assim, a chamada crise do modelo de Estado--Social117, cuja estrutura não consegue suportar o extenso rol de programas assumidos no bojo da Carta Constitucional.

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Dificuldades encontradas com o modelo de Estado Bem-estar, no centro do qual havia ampla atribuição de serviços e atividades118, tanto econômicas quanto interventivas ao Poder Público, além de alta carga de despesas públicas, crise financeira e excesso de burocracia119levam à necessidade de seu

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redimensionamento - revisando suas estruturas administrativas - e à ineficiência de suas regulações e atividades monopolizadoras de mercados específicos.

Desta forma, a partir, sobretudo, de meados da década de noventa do século XX, houve, não apenas no Brasil, uma sensível mudança na concepção das atribuições do Estado, sobretudo no atinente ao exercício de algumas funções dentro do campo denominado ‘atividade econômica em sentido amplo’120, a que se divide em ‘atividade econômica em sentido estrito’ e ‘serviços públicos’. Viu-se, portanto, um intenso processo de desestatização na prestação de serviços públicos, notadamente nas áreas de telefonia e energia elétrica. Alguns referem à subdivisão entre intervencionismo direto121 e indireto122.

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O momento histórico pelo qual passou o processo de reestruturação estatal do Brasil foi captado por Phillip Gil França:

A transformação da forma de atuar do Estado nacional ocorrida no último século iniciou-se ao final dos anos 80, quando o processo de redemocratização do País já encontrava uma estabilidade apta a viabilizar uma efetiva reestruturação da Administração Pública. Tinha-se, para tanto, o objetivo de promover o desafogamento de suas dívidas. Isto porque, após o regime militar totalitário - período marcado pelo grande inchaço da máquina estatal -, o empenho da sociedade e da Administração Pública em manter o regime democrático instituído gerou novas necessidades de desenvolvimento social e econômico para toda a nação.123Sobredita nova orientação estatal tendeu a remodelar e reestruturar sua atuação, destacadamente na realização da cognominada atividade econômica em sentido estrito e na prestação de serviços públicos, sobrelevando o grau de participação dos particulares na economia, por meio da promoção de eventos como desregulamentação, desestatização e desmonopolização de atividades, antes suportadas à carga exclusiva do Poder Público.

A propósito, Eros Grau define, em sentido literal, desregular a economia no sentido de não dar ordenação à atividade econômica e desregulamentar quer dizer deixar de fazê-lo através de preceitos de autoridade, ou seja, jurídicos124. No entanto, seguindo seu raciocínio, "a desregulação de que se cogita, destarte, em realidade deverá expressar uma nova estratégia, instrumentada sob novas formas, de regulação. Des-

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de essa perspectiva, pretender-se-ia desregulamentar para melhor regulamentar"125.

Algumas atividades próprias à natureza do Estado126 (como segurança, relações exteriores, justiça, legislação), neste contexto, ainda lhe incumbem; todavia, transpassa-se ao particular o exercício de uma considerável parcela de atividades econômicas (industriais, financeiras e comerciais) e sociais (educação, saúde, pesquisa). Porém, a desregulação, por consequência, aumenta a participação privada especial-mente nos serviços públicos (transportes, telecomunicações e energia elétrica).

Neste panorama, o ente estatal passou a atribuir ao setor privado funções típicas de interesse público (serviços não exclusivos do Estado) e, em paralelo, viu-se a redescoberta do princípio da subsidiariedade, o qual propõe "algo de novo entre a intervenção total do Estado e a supressão da autonomia privada e o liberalismo clássico e sua política de intervenção mínima do Estado"127. Para Carlos Ari Sundfeld, "a reconstru-

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ção da teoria da ação administrativa passa (...) pela intensificação de pelo menos três grandes setores: a administração de gestão, a administração fomentadora e a administração ordenadora"128.

Consoante adiante se verá, nesta mesma década de 1990, o Estado também promoveu um arrocho na política de estruturação bancária...

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