As Manifestações Populares como Ferramenta Reivindicatória dos Consumidores - Problema: As Manifestações Populares de Rua para Reivindicação de Direitos dos Consumidores Podem Ser Evitadas?

AutorFlávio Citro Vieira de Mello
CargoJuiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
Páginas97-139

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1. Introdução

As manifestações contra o aumento das tarifas de ônibus e metrô convocadas pelo MPL ? Movimento Passe Livre, em junho de 2013, alcançaram protagonismo dos jovens na participação na vida pública, quando milhares de pessoas tomaram as ruas para protestar contra o aumento da tarifa de ônibus, portando faixas com os dizeres “O Gigante Acordou”, “Vem Pra Rua”, “Não é só por 20 centavos”, em verdadeira demonstração de força social, sustentando uma mobilização social inédita, sem apoio de outros setores, desprezando as elites políticas e organizações tradicionais, afastando partidos, sindicatos, associações ou movimentos sociais e realizando protestos populares de formação espontânea de grupos de pressão, em um processo descentralizado e despojado de lideranças do movimento, organizado primordialmente pelas redes sociais (Twitter e Facebook), equação que não implica qualquer controle sobre o experimento que brotou da insatisfação popular protagonizada por sujeitos sem representação, por grupos heterogêneos, sem vínculos comunitários (comunidade ausente ou comunidade negativa – PÉLBART, 2010), em um verdadeiro despertar cívico de protesto contra a má qualidade e o aumento das tarifas do transporte público essencial. Segundo Rizzato Nunes:

A maior parte das reivindicações envolve o direito dos cidadãos-consumidores a transporte público eficiente e barato ou grátis, à segurança pública, à distribuição correta das receitas arrecadadas, o que aponta para as prioridades de investimentos, etc. Não se trata de um movimento revolucionário organizado desses que pretendem derrubar governos. Pelo que se pode ver, é algo voltado ao legítimo exercício dos direitos de cidadania já instituídos – dentre eles os direitos dos consumidores relacionados aos serviços públicos e também privados –, cuja qualidade e eficiência têm deixado muito o desejar.... Nas presentes manifestações, há elementos inéditos: não foram organizadas por partidos políticos; tirando os casos de extremistas e infiltrados, o movimento é pacífico; envolvem pessoas muito diversas e de idades diferentes; ao que consta, o movimento surgiu de forma espontânea.

O movimento popular de insatisfação reuniu ativistas do próprio MPL, integrantes da sociedade e coletivos libertários, portando reivindicações contraditórias nos cartazes empunhados por grupos sociais muito diferentes entre si, até mesmo antagônicos. Segundo a expressão do jornalista Leonardo Sakamoto, “levaram o Facebook para a rua”, na marcha de 17 de junho de 2013, já que “o chamado feito pelas redes sociais trouxe as próprias redes

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sociais para a rua. Quem não percebeu que boa parte dos cartazes eram comentários de Facebook e Twitter?”. O experimento social ganhou força formando uma “multidão” (NEGRI, 2005) e pode ter assumido contornos anárquicos a partir da dura repressão das forças policiais, que atraiu a reação popular, gerando inesperada espiral de violência.

As mobilizações do Movimento Passe Livre, de junho de 2013, foram protagonizadas por uma “multidão de anônimos” que se reconhecem excluídos da política, antes restrita aos filiados e às organizações tradicionais como partidos, sindicatos, e que, portanto romperam a barreira que afasta o cidadão comum da política, por isso hostilizando todos aqueles que representavam a política tradicional, repelindo a participação de militantes partidários e sindicais. O conceito de multidão, proposto por Tony Negri, trata das sociabilidades emergentes e contraria a ideia de massa: “A multidão é heterogênea, plural, desprovida de centro, de líder, de hierarquia, de uma direção unívoca”, como se viu nas manifestações recentes no Brasil.

O que aglutina a multidão heterogênea é o interesse remoto de mostrar insatisfação como expressão de uma inteligência coletiva, ao passo que os interesses próximos são diversos, já que alguns lutam pela redução do preço das passagens do transporte público coletivo, outros buscam a melhoria do transporte público, alguns questionam e criticam os gastos da Copa do Mundo de 2014, outros combatem a corrupção. “A multidão tem muito menos a ver com tudo aquilo que pretende representa-la” (PÉLBART, 2010). Segundo o jornalista Leonardo Sakamoto, “um grupo, principalmente de jovens, precariamente informado, desaguou subitamente nas manifestações de rua, sem nenhuma formação política, mas com muita raiva e indignação, abraçando a bandeira das manifestações”. Os protestos tomaram a forma de atuação em rede e não mais sob direção centralizada. Sadi Dal Rosso vislumbra, no conceito de multidão, verdadeiro aprendizado democrático:

Os novos movimentos sociais que trazem em seu interior sementes de uma forma de organização democrática, não mais aquela do comando centralizado, expressa por movimentos revolucionários históricos e, sim, outra maneira de democracia participativa em que os grupos aportam suas diversidades e encontram elementos comuns de decisão. A idéia de democracia é um dos princípios de organização dos movimentos sociais, sendo possível pensá-la como aspiração universal da multidão.

Para Peter Pál Pélbart:
Em vez de perguntar o que “eles”, os manifestantes brasileiros, querem, talvez fosse o caso de perguntar o que a nova cena política pode desencadear. Pois não

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se trata apenas de um deslocamento de palco – do palácio para a rua –, mas de afeto, de contaminação, de potência coletiva. A imaginação política se destravou e produziu um corte no tempo político. A vivência de milhões de pessoas ocupando as ruas, afetadas no corpo a corpo por outros milhões, atravessados todos pela energia multitudinária, enfrentando embates concretos com a truculência policial e militar, inventando uma nova coreografia, recusando os carros de som, os líderes, mas ao mesmo tempo acuando o Congresso, colocando de joelhos as prefeituras, embaralhando o roteiro dos partidos – como se tudo isso não fosse “concreto” e não pudesse incitar processos inauditos, instituintes!

Por outro lado, é inegável a capacidade do
movimento de explicitar e extravasar o grau
de insatisfação dos consumidores e cidadãos
com a baixa qualidade e a carestia dos serviços
públicos essenciais de transporte à disposição
da população, equação que clama pela criação
de novos mecanismos que possam melhor
perscrutar as aspirações sociais por mudanças e
reformas e qualificar as organizações e entidades
existentes para defesa do consumidor, a fim
de que se evite o mecanismo de utilização de
manifestações populares para busca de direitos dos consumidores. E por quê? Porque a defesa do consumidor já é garantida pelo ordenamento e protegida e tutelada. O cenário de uma multidão de consumidores protestando suas insatisfações e denunciando a fragilidade e deficiência do transporte público desafia a compreensão do “sistema de defesa do consumidor” instituído pelo Estado, mormente diante do fato de que o movimento se descontrolou, redundando em anarquia e violência, o que deve ser evitado em homenagem ao império da lei e para preservação e garantia da segurança e paz social. No particular, vale lembrar Rui Barbosa, para quem “cada atentado que se tolera à desordem é um novo alimento que se lhe ministra. A fera não se desafaz de devorar, devorando. Nas presas menores se lhe aguça o apetite das maiores. Não reagindo em defesa dos particulares, o poder abandona a da sociedade”.

Não obstante se tratar de uma demonstração inicialmente pacífica de reivindicação de consumidores de serviços públicos essenciais, mesmo após a conquista da redução do preço das passagens o movimento ganhou novos rumos e adesão de um número maior de manifestantes, para debaterem como principais temas: demanda por mobilidade urbana, reforma política, precariedade do sistema de saúde, combate à PEC 37, melhoria do sistema de

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educação, questionamento da violência policial, crise de segurança pública, corrupção, manifestações contra a Copa do Mundo de 2014 e oposição aos governadores dos Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, Sérgio Cabral e Geraldo Alckmin.

Segundo o cientista político Júlio Aurélio Vianna Lopes:
Os protestos são sintomas de crise da nossa democracia, mas de uma crise de crescimento. Afinal, não pugnaram por retrocessos autoritários, mas, ainda que de modo fragmentário, por uma representação política a ser exercida com transparência constante, permeável aos temas considerados fundamentais e que os priorizem na sua atuação.

A equação aponta para uma oportunidade de aperfeiçoamento da democracia representativa, na medida em que se busca uma renovação ética de políticas públicas retributivas entre os cidadãos eleitores em relação ao poder público e os eleitos que os representam, reivindicando no Brasil a melhoria dos serviços de transporte, saúde e educação, enquanto que na Europa/Espanha foram priorizadas reivindicações trabalhistas e nos EUA houve protestos contra os lucros bancários excessivos.

A multidão de consumidores protestando, em junho de 2013, contra o serviço de transporte público, sem uma agenda ou pauta harmônica, despojada de qualquer liderança, rendeu campo propício para captura do movimento por aproveitadores, que se insinuaram e tomaram a frente das manifestações, com...

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