As condições de trabalho dos motoristas e cobradores do Rio de Janeiro e a identificação com as teorias da escravidão urbana

AutorBenizete Ramos de Medeiros - Wander Paulo M. Teles
CargoAdvogada Trabalhista; professora de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho - Advogado formado pela UVA
Páginas131-152

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Introdução

O presente texto, que tem sua base em pesquisa de campo, portanto, empírica, visa dialogar as condições da categoria dos motoristas e cobra-

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dores de coletivos no Brasil, a partir do recorte na região dos lagos, com o im de identiicar - ou não - a existência da escravidão urbana nessa categoria e o dano existencial.

As bases teóricas primárias são, primordialmente, as entrevistas a um grupo de proissionais dessa categoria e o trabalho desenvolvido pelo Mi-nistério Público do Trabalho, no Brasil, de atuação dinâmica e tenaz nesse movimento.

O grau de stress e adoecimentos a que submetidos esses trabalhadores despertou a atenção e interesse dos pesquisadores, que foram buscar fundamentos para análise sob esses dois focos, que atinge o tecido social do Brasil, atualmente.

É certo que a moderna organização produtiva do trabalho, adotada pelas empresas, para se manterem no mercado competitivo e globalizado em crise mundial, busca redesenhar o processo produtivo de organização e gestão de pessoal. Fato inexorável nas duas últimas décadas. No entanto, juntamente com essa reengenharia, veio a exploração da mão de obra, em alguns setores, como se demonstrará.

Se a produtividade e competitividade são importantes para autossustentabilidade, não menos importante é o fator humano, representado pela integridade física e emocional do empregado, que venda a força de trabalho para os objetivos econômicos do empregador. Mas essa força de trabalho é objeto de proteção constitucional e infraconstitucional.

A análise é especíica em face dos motoristas e cobradores e o método adotado é o empírico, a partir de entrevistas e análise de documentos bem como bibliográico em obras relacionadas ao tema.

1. As condições de trabalho dos motoristas e cobradores de ônibus na região dos lagos do estado do rio de janeiro

As condições de trabalho desse setor - transporte público - vêm sendo alvo de acirradas discussões, inclusive no Judiciário especializado, em razão das greves por melhores condições de trabalho e reajustes, bem como das ações individuais tendo como objeto dos pedidos, via de regra, pagamento de horas extraordinárias e indenizações por adoecimentos.

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A origem é a utilização da força de trabalho, na maioria das vezes, em condições desumanas, o que é denominado por Octavio Ianni1 como

"superexploração", assim caracterizada por ele:

"Superexploração: salários ínimos, longas jornadas de trabalho ‘legiti-madas’ pelo instituto das horas extras, aceleração do ritmo de trabalho pela emulação do grupo de trabalho e pela manipulação da velocidade das máquinas e equipamentos produtivos, ausência ou escassez de proteção ao trabalhador em ambientes de trabalho, insegurança social."

Os trabalhadores têm trabalhado, cada vez mais, de forma densa, intensa e tensa. Essa aceleração, embora tenha promovido uma mudança positiva na produtividade, está, por outro lado, repercutindo negativamente na saúde física e mental dos membros dessa categoria, e na vida social, nas suas várias vertentes.

Dentro dessa perspectiva, pretende-se demonstrar, a partir de pesquisas e entrevistas realizadas na Região dos Lagos do Estado do Rio de Janeiro, as reais condições de trabalho a que os motoristas e cobradores do transportes coletivo são submetidos, nesse Estado, e como elas repercutem na vida e no comportamento desses proissionais, bem como analisar a relação que essas mesmas condições de trabalho possuem com a precariedade desse tipo de transporte, que acaba repercutindo na sociedade que dele se utiliza, fator que não se aprofundará neste ensaio, mas, também não se pode desprezar.

1.1. O Confronto com as entrevistas realizadas

Segundo dados fornecidos pelo SINTRONAC, em agosto de 2014, a categoria dos motoristas e cobradores de ônibus na Região dos Lagos do Estado do Rio de Janeiro contava com, aproximadamente, 3.250 proissio-nais, distribuídos em 4 empresas, das quais 3 pertencem ao mesmo grupo econômico. Esse é um número variável, que se modiica a cada mês, em virtude das constantes admissões e demissões2.

Para a realização da análise ora proposta, foram realizadas pesquisas de campo, na Região dos Lagos do Estado do Rio de Janeiro, com 18 pro-

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issionais da categoria, sendo, desse total, 11 motoristas e 7 cobradores, além de uma entrevista realizada com o diretor do SINTRONAC, Sr. Gilson Amaro, tendo esse autorizado, por escrito, a utilização de todos os dados coletados durante a sua entrevista, sem nenhuma restrição.

Dos motoristas e cobradores entrevistados, apenas um se negou a conceder autorização para a divulgação do conteúdo de sua entrevista; os demais a concederam, com a ressalva de não serem identiicados e, por isso, seus dados pessoais e proissionais não serão revelados, utilizando-se as primeiras letras de seus respectivos nomes.

Serão analisados os principais pontos abordados durante as entrevistas, a partir das respostas obtidas, que retratam as condições de trabalho dessa categoria.

1.1.1. O ambiente de trabalho

Os motoristas e cobradores do transporte coletivo exercem sua ativi-dade proissional no espaço da rua, sujeitos, a todo tipo de violência, aos problemas urbanos e aos riscos intrínsecos do processo produtivo. Representam a categoria mais exposta aos acidentes de trânsito.

Aliado a isso, encontra-se a precariedade da infraestrutura dos pontos de parada, chamados pontos inais, apontada por 33% dos entrevistados como fator responsável pelas condições de trabalho precárias, pois nesses lugares nem sempre há água potável e banheiro disponíveis e alimentação de qualidade, ou seja, condições mínimas de bem-estar para o desenvolvimento do trabalho.

Quanto ao aspecto da violência, o motorista O. F. S.3 disse ter sofrido um assalto, há aproximadamente três (3) anos, próximo à localidade de Tribobó, em Niterói, icando sob a mira de um revólver por longo tempo, enquanto seguia viagem a pedido dos assaltantes que, por diversas vezes, puxou o gatilho da arma, além de desferir golpes em sua cabeça, o que lhe causou lesões no crânio.

Registrou, ainda, que, em decorrência desse episódio, sofreu um abalo emocional, o que causou o afastamento de suas atividades pela própria empresa, por uma semana, após o que, ainda muito traumatizado, retornou às atividades sem um desempenho que resultasse em bem-estar.

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Nesse mesmo sentido, a declaração do motorista M. A. R.4, que

disse ter sofrido um assalto violento, também numa das viagens de Niterói a Araruama, no ano de 2010, assalto esse que acarretou a morte de um policial, que estava dentro do ônibus e reagiu ao assalto, além da lesão de outros 4 passageiros.

Esse caso teve repercussão nas diversas mídias do Estado, dentre os quais destaca-se o Jornal O Globo, com a seguinte matéria "PM é morto e quatro icam feridos em tentativa de assalto a ônibus da linha Niterói--Araruama"5.

Após esse fato, M. A. R. desenvolveu sérios problemas psicológicos, icando licenciado do trabalho, pelo INSS, por exatos 12 meses.

No que diz respeito aos acidentes de trânsito, embora 89% dos en-trevistados tenham dito que nunca se envolveram em um, o motorista O. F. S., hoje com 17 anos na empresa em que trabalha, relatou que no dia 30.4.2011 se envolveu num acidente, na Alameda São Boaventura, em Niterói, acarretando a morte de um motociclista, que, segundo ele, foi o causador de sua própria morte.

Em razão desse episódio, O. F. S. passou por um período de instabilidade emocional, mas, na ocasião, a empresa não o encaminhou para atendimento psicológico e nem concedeu afastamento temporário do trabalho, ou seja, seguiu dirigindo.

De acordo com 83% dos entrevistados, os veículos que hoje compõem a frota das empresas, do mesmo grupo econômico, são confortáveis, porquanto são veículos novos, com menos de 2 anos de uso, alguns dos quais, inclusive, com câmbio automático e com ar condicionado, o que favorece bastante as condições de trabalho, mas que nem sempre foi assim. Eram veículos duros, velhos, barulhentos.

No que tange ao relacionamento com os colegas de trabalho, 89% dos entrevistados disseram possuir um bom relacionamento com os demais pro-issionais da categoria, tendo o motorista V. F.6 ressaltado que é justamente por causa dos bons momentos de descontração com os companheiros de proissão, entre uma viagem e outra, que o stress pela rotina é minimizado.

Para 44% dos entrevistados, um dos maiores fatores estressantes no ambiente de trabalho são os passageiros, em razão das cobranças relacio-

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nadas à superlotação dos ônibus. Superlotação é, pois, apontada por 16% dos motoristas e cobradores como fator estressante.

Segundo os motoristas S. G. S.7 e A. T.8, a superlotação pode ser ex-plicada pela insuiciência de proissionais para atenderem, satisfatoriamente, a todos os horários e à demanda que se apresenta, o que, inclusive, se constitui uma das causas da necessidade de realização de horas extraordinárias, como se verá adiante.

Certo é que a superlotação dos veículos coloca em risco tanto a segurança dos proissionais, quanto a dos passageiros, pois o motorista, já estressado, por ter que dirigir, não raras vezes, com passageiros bem próximos da cadeira do motorista ou do cobrador, sentados no capô do veículo, reclamando a todo instante e reduzindo a visão reduzida, posto que a aglomeração de pessoas prejudica a visão.

Assim, é necessário que a atenção ao meio ambiente do trabalho seja constante e permanente, sobretudo em relação à infraestrutura de trabalho, se estendendo para além dos investimentos em veículos...

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