Bioética e procriação artificial: afeto, sexualidade e identidade genética

AutorJeferson Dytz Marin; Carlos Alberto Lunelli
Páginas175-187

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Introdução

Para o ser humano, procriar é mais, muito mais, do que simplesmente garantir a perpetuação da espécie. A procriação pode significar a plena realização do indivíduo. 123

Com o avanço tecnológico, cindiu-se a procriação da sexualidade e provocou-se verdadeira revolução nesse campo, ainda mais a partir das possibilidades de obtenção de uma nova vida, dispensando-se por completo o ato sexual, reconhecidamente a forma natural de alcançar-se a procriação.

E o desenvolvimento de técnicas avançadas, que permitem chegar-se à procriação independentemente do ato sexual, e representa a solução para aqueles que, por condições físicas, acham-se impossibilitados de gerar nova vida e, também, para os que registram a opção de ter um filho, prescindindo da sexualidade.

É evidente que tais avanços abalaram basilares princípios do Direito, que se firmavam apenas na procriação natural, única forma de gerar um novo ser que era conhecida da espécie humana.

As grandes discussões que se estabelecem, todavia, parecem carecer de fundamentação capaz de desencorajar as procriações assistidas e, nesse sentido, procura-se o estabelecimento de um novo paradigma para o Direito de Família que, proclamando o respeito à individualidade de cada um, privilegie o afeto, como elemento de sustentação e justificação das relações entre as pessoas. Page 176

I A procuração humana e a evolução tecnológica
1. 1 O significado do ato de procriar

O ato de procriar constituiu-se numa das bases da instituição do casamento. Já no Direito romano, impedia-se o casamento dos castrados e dos absolutamente impotentes, porque o fim da instituição era a procriação.

A importância dada à capacidade de procriar, no casamento, determinou que, entre os romanos, Supurius Carvilius Ruga repudiasse a sua mulher por ser estéril. Surgiu, assim, o primeiro divórcio em Roma, em 523 a.C.4

O Direito Canônico, por sua vez, distingue no matrimônio fins primários e secundários. Os fins primários são a procriação e a educação da prole, enquanto que os secundários são os "remédios à concupiscência" e a ajuda mútua5. Atualmente, a Igreja Católica reconhece que a esterilidade não é causa impeditiva para o casamento (Cânone 1.068 § 3º). Todavia, a impotência ainda impede o matrimônio ou, se realizado, é causa de sua anulação.

O Direito Pátrio, bem afinado ao Direito Romano e à Moral Cristã, também se orientou no mesmo sentido: entre os motivos determinantes da anulabilidade do casamento, está o erro essencial quanto à pessoa do cônjuge, disposto no artigo 218, do Código Civil.

O artigo seguinte, do mesmo Diploma, traz a especificação do que se considera "erro essencial quanto à pessoa" e, entre quatro incisos, está a "ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável"6.

A interpretação exegética dessa disposição, de acordo com Clóvis Bevilacqua, citado por J. M. Carvalho Santos, representa "um defeito que impeça os fins do casamento, como a inaptidão para conceber ou para procriar"7. Todavia, para o ordenado pátrio, a esterilidade não constitui deformidade que justifique a anulação do casamento, porque apenas impede a procriação, não oferecendo obstáculo à união afetiva dos cônjuges e nessa é que esta a essência do matrimônio.

De qualquer modo, percebe-se claramente a estruturação do casamento com a finalidade procriativa.

É evidente que essa estruturação foi estabelecida e sustentou-se a partir de concepção morais, sociais e religiosas, que construíram um significado especial para a procriação que, sem dúvida, vai além da preservação da espécie. Page 177

Procriar também representa uma resposta social. Posternan diz que "É a sociedade que deseja sua própria sobrevivência e cobra do casal a função de pai"8.

O indivíduo nasce, cresce e desenvolve-se nutrindo, individualmente, o anseio procriativo. E, ainda de acordo com Posternan, "na verdade, ter filhos reaviva em todo o ser humano desejos sentidos na infância em relação aos próprios pais. Esses desejos têm a ver com a capacidade que percebíamos neles de "fazer coisas" que nós não conseguíamos - entre elas, manter relações sexuais e gerar filhos - o que nos acarretava raiva e inveja"9.

No mesmo sentido, Eduardo de Oliveira Leite escreve que "Através da procriação, refazemos aquilo que fizeram nossos pais, de continuar a cadeia da vida e, pois, lutar contra o envelhecimento e a morte, pela criança que deve sobreviver aos pais. A criança nasce e dá, pela sua presença, o estatuto de pais a seus procriadores. A partir de então, estes serão um pai e uma mãe, tanto quanto seus próprios pais"10.

Percebidos esses elementos, corolários é o reconhecimento de que a não procriação, especialmente dentro do casamento, é exceção que traz frustração de aceita e natural expectativa. Ainda mais que a esterilidade, desde as mais remotas épocas, sempre foi considerada sinal do mal, enquanto que a fecundidade era a representação da bênção e da felicidade.

1. 2 A separação da procriação da sexualidade

O advento dos métodos contraceptivos permitiu separar a atividade sexual do fenômeno procriativo. O homem percebeu que poderia sentir prazer com sua sexualidade, sem estar obrigado à procriação.

Esse fato representou importante marco sobre o comportamento humano e, como assevera Villela, "o impacto dessa ruptura contemporânea, ao produzindo pela fissão nuclear nas ciências da natureza"11.

Perceber a possibilidade do exercício da sexualidade, sem a necessidade de procriação, contribuiu para a desmistificação do casamento, como instituição destinada ao fim procriativo. Certamente foi um dos fatores responsáveis pela perda da importância institucional do casamento na sociedade moderna.

Entretanto, nas recentes décadas sobrevém ainda diversa oriunda da evolução tecnológica, que também encontra relação na desvinculação do exercício da sexualidade com a procriação e é a hipótese inversa, isto é, de obtenção da procriação, dispensandose a sexualidade como meio. Page 178

Ao analisar o tema da separação entre a sexualidade e a reprodução, e depois de reconhecer ocorrido há muito tempo o afastamento da sexualidade da sua aptidão para a reprodução, José de Oliveira Ascensão registra que "a grande transformação que hoje se defronta, consiste em ter-se quebrado a derivação necessária de reprodução e sexualidade. Adquirem-se conhecimentos e desenvolvem-se novas técnicas capazes de levar à fertilização e ao nascimento, prescindindo do encontro sexual"12. E arremata, o mesmo autor: "as certezas jurídicas sobre a dependência entre sexualidade e reprodução são arrasadas".

E a humanidade ainda apenas assiste, na espécie humana, a técnicas que se utilizam das células genitais. Mas animais e vegetais já foram obtidos a partir de recursos que envolvem manipulação de células não genitais, possibilitando o surgimento de seres com código genético idêntico.

O conhecimento humano tem ilimitado poder de evolução. Ao Direito, cabe acompanhar essa evolução, regulando e tutelando novas situações jurídicas que se representam, razão pela qual também lhe toca regular as técnicas de reprodução assistida.

1. 3 As técnicas de reprodução como solução da esterilidade

A humanidade chegou a acreditar a esterilidade à maldição divina, enquanto reconhecia na fecundidade a benevolência. Somados os condicionantes psicossociais aos preceitos morais e religiosos, é bem fácil antever a representação da situação de esterilidade para o casal, que vão desde a frustração até situações de angústia patológicas.

A respeito, diz Eduardo de Oliveira Leite que "A esterilidade atinge o homem no que ele tem de mais profundo e provoca importantes repercussões psicológicas. Na mulher, a esterilidade também gera reações que vão desde a mais total revolta até o completo abandono"13.

E a evolução do conhecimento humano, na área da reprodução humana, apresentase como uma das soluções para o problema da esterilidade, notadamente para aqueles que não percebem, na adoção, uma possibilidade concreta e atrativa.

A pioneira das técnicas de reprodução assistida foi a inseminação artificial - que poderá ser homóloga ou heteróloga, dependendo estar-se utilizando, ou não, o sêmen do marido. A primeira, que representa o depósito do sêmen do marido no corpo da mulher, através de método que não a cópula natural, não gera maior controvérsias, quer no plano ético, quer no religioso ou jurídico, ao mesmo enquanto utilizado sêmen fresco.

A inseminação heteróloga, todavia, encontra resistência pelo fato de depender da utilização do sêmen de uma terceira pessoa, que será o ascendente genético do ser. Page 179

Além das resistências de ordem psicológicas, morais e religiosas, a inseminação heteróloga também encontra oposições jurídicas, especialmente em relação à questão do estabelecimento da filiação14 supera atualmente o sistema clássico, ou legalista (através do qual é pai quem justas núpcias prova) apresentam-se questionamentos jurídicos envolvendo possibilidades de que o marido da mulher na qual se fez inseminação heteróloga pudesse, posteriormente, negar a paternidade. Ou, de outro lado, que o doador do esperma tivesse a prerrogativa...

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