Tribunais como árbitros ou como instrumentos de oposição: uma tipologia a partir dos estudos recentes sobre judicialização da política com aplicação ao caso brasileiro contemporâneo

AutorLuciano da Ros
CargoMestrando em Ciência Política.Bolsista
Páginas86-105

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1. Introdução

A existência de um Poder Judiciário independente e a obediência a um conjunto de regras universais pelos principais atores políticos tendem a ser vistos como sinais de maturidade democrática. Para alguns, a própria democracia se confundiria com o governo das regras, capaz de frear o arbítrio, em contraposição ao chamado governo dos homens potencialmente autoritário1. Grande parcela da filosofia que informa o constitucio-nalismo vê a estrita observância dessas regras como fiadora fiel do regime democrático e de suas instituições. Mais que isso: esse modo de pensar incumbe à magistratura o papel de cumpridora e de eventual defensora última das regras do jogo, protegendo minorias e salvaguardando a democracia2. Em síntese, trata-se da visão que projeta nos tribunais, especialmente naqueles intérpretes da Constituição, a imagem e a função de “guardiões da Constituição” (guardianship)3.

Essa visão de certa forma romântica sobre o Poder Judiciário, que per-passa muitos manuais de ensino jurídico, deixa pouco claras, entretanto, as relações que se estabelecem entre a atuação dos juízes e as interferên-cias do mundo propriamente político. Pouco esclarece também sobre oPage 87modo como as regras, e as decisões judiciais por elas informadas, são implementadas ante os demais atores e instituições. Em suma, essa ótica projeta sobre a lei uma eficácia causal independente, afirmando que regras e decisões judiciais são cumpridas simplesmente pelo fato de serem (ou derivarem de) normas jurídicas.

Vista desta maneira, contudo, a questão pode revelar-se falsa. A des-peito da visão política que o embasa, a principal contribuição realizada pelo trabalho pioneiro de Ferdinand Lassalle é o fato de haver ele obser-vado que regras constitucionais não se sustentam sozinhas, mas que, ao contrário, necessitam do devido suporte político para viger4. Em realidade, trata-se exatamente do mesmo achado de Barry Weingast em seu influente artigo sobre os fundamentos políticos da democracia e do estado de direito5. As conclusões a que ambos os textos conduzem podem ser sintetizadas na seguinte forma: regras são cumpridas porque há interesse dos demais agentes da arena política em observá-las – especialmente daqueles atores capazes de intervir no sentido de modificar essas mesmas regras6. O mesmo pode ser dito sobre as decisões proferidas por tribunais que interferem diretamente sobre a arena política. Isso é especialmente aplicável àquelas cortes ditas constitucionais, que interpretam as regras básicas do convívio democrático, conferindo sentido concreto à Constituição de cada país. Sua independência – e o eventual ativismo judicial daí decorrente – não se fundamenta na mera existência de regras jurídicas prévias, mas, em grande medida, em uma determinada correlação de forças políticas capaz de fornecer suporte para que assim atuem. Estudar, portanto, essa relação entre o sistema político e a independência judicial é o propósito do presente trabalho. Centra-se, deste modo, o estudo no conjunto de tribunais ditos supremos – ou constitucionais – que fariam a interpretação máxima da Constituição escrita; quaisquer outros casos que não se enquadrem neste universo não serão aqui trabalhados. Isto porque, estes são os tribunais que de modo mais claro se relacionam com a dinâmica propriamente política, sendo diretamente responsáveis pelos termos em que se processa o controle horizontal da atividade do governo em diversos países7. Para tanto, buscar-se-á compreender quaisPage 88são as causas que levam ao fortalecimento de certos tribunais constitucio-nais, o que permitirá explicar, obviamente, quais fatores retiram-lhes força ante outras instituições políticas. A pergunta pode ser ainda realizada de outro modo: como explicar que certos tribunais, a despeito de possuírem um conjunto similar de atribuições formais, possuam níveis de ativismo tão díspares? Isto é: em certos países, os tribunais máximos de interpreta-ção da constituição apresentam-se como claros protagonistas da dinâmica política, ao passo que em outros sua atuação é bastante discreta. Como explicar essa diferença?

A hipótese aqui trabalhada centra-se na dinâmica de distribuição de poder existente no próprio sistema político, considerada variável – embora exógena –, determinante da dinâmica da magistratura8. Para desenvolvê-la, inicialmente, serão descritas conclusões recentes alcançadas nos estudos sobre judicialização da política, com forte apelo à bibliografia da Ciência Política, passando-se, em seguida, à formulação de um modelo teórico capaz de abarcar tais conclusões de modo coeso e sistematizado. Nessa formulação, construir-se-á uma tipologia dual, centrada no grau de distribuição do poder político (power-sharing) existente em uma dada correlação das forças, se mais disperso ou mais concentrado. Isso permitirá analisar a situação de democracias recentes à luz do caso brasileiro, evidenciando-se os dilemas decorrentes da institucionalização de uma magistratura independente nesses cenários de recente normalização democrática.

Como se pode observar, a reflexão que pauta este estudo é diversa das considerações geralmente direcionadas ao estudo das instituições judiciais. O esforço ora empreendido é de caráter marcadamente interdisciplinar e valoriza o viés analítico, em prejuízo daquele dito normativo ou prescriti-vo. Especificamente, trata-se de trabalho que enfatiza os diálogos possíveis – e por vezes necessários – entre o Direito e a Ciência Política. Acreditase poder extrair disso um instrumental capaz de explicar a relevância do Poder Judiciário em diversos contextos político-institucionais. Frise-se que o diálogo entre essas duas áreas, embora recente, vem ganhando destaque nos últimos anos entre os próprios acadêmicos do Direito9. Segue-se, deste modo, a recomendação de buscar empregar o estudo da política comoPage 89auxiliar para a compreensão do fenômeno jurídico, como a emergência do Estado de Direito e do constitucionalismo, além das fundações políticas da independência do Poder Judiciário e do próprio ativismo judicial10.

2. Conclusões recentes nos estudos sobre judicialização da política

O comportamento judicial não é insensível ao ambiente político em que opera. Ao contrário do que intuitivamente poder-se-ia pensar, magistrados – em especial ministros de tribunais de maior envergadura hierárquica – não decidem apenas tendo conforme as regras formais do ordenamento jurídico. Ao contrário, pode-se afirmar que levam em conta as possíveis conseqüências de suas decisões. Desta maneira, adotam um comporta-mento estratégico, especialmente verificando – e buscando – quais são os eventuais suportes políticos para suas decisões. Esta linha de raciocínio por vezes se torna explícita, passando os juízes a desenvolverem o que os juristas denominam ser argumentos conseqüencialistas11.

O objetivo deste estudo é, portanto, articular teoricamente, por um lado, essa espécie de racionalidade estratégica adotada pelos magistrados como, por outro lado, estudos de política comparada e de judicial politics12que analisam a independência e o ativismo judicial dos tribunais constitu-cionais tomando como ponto de referência o grau de distribuição de poder existente no macro-sistema político.

Não se está aqui a afirmar que as preferências dos magistrados não influam no modo como decidem. O que se quer expressar aqui é que há fortes condicionamentos interinstitucionais que conformam de modo sig-nificativo as preferências dos julgadores e que acabam por induzi-los a atuar de certa maneira. Tampouco se está a dizer que a estrutura organiza-cional do Poder Judiciário, e de suas respectivas cortes supremas, não seja relevante para o modo como operam os tribunais. Este ponto, entretanto, não será objeto de discussão aqui, muito embora se reconheça a importân-cia dessa variável na dinâmica jurisdicional.

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Em síntese: o argumento percorrido aqui, que se centra nas relações entre os diversos atores do sistema político como variável explicativa para o maior ou menor poder dos tribunais constitucionais, não exclui os demais, apenas soma-se a eles, constituindo um forte indicador da dinâmica das cortes, conforme vem indicando a bibliografia, que será objeto de aná-lise a seguir.

Dois influentes estudos sobre política comparada podem ser emprega-dos como ponto de partida, visto que ambos agregam o poder dos juízes como elemento de análise de diversos sistemas políticos. Isto é, trata-se de trabalhos de política comparada de larga escala, que não estão, ao menos diretamente, preocupados em estudar a fundo o modo como atuam os tribunais. Daí a sua utilidade em ver como os tribunais são influenciados pelo arranjo político institucional do macro-sistema político.

O primeiro destes trabalhos é o influente estudo de George Tsebelis13, que parte basicamente de dois estudos que consideram os tribunais como veto players14, justamente para afastar-lhes deste rol. Isso porque, ele prefere estudar o desempenho do Poder Judiciário como uma variável dependente do número de veto players existentes em uma dada realidade política. Resumidamente, sua conclusão aponta para a seguinte regularidade: quanto maior o número de veto players, e quanto maior a distância entre eles, maiores serão as possibilidades de existência de um Judiciário independente e ativo15. Quer dizer, quanto maior a distribuição do poder político existente no sistema político em si mesmo, maiores as possibilidades de o Judiciário vir a se manifestar independente e ativamente.

Essa mesma lógica é apontada na importante obra de Arend Lijphart. Em sua tipologia clássica entre democracias consociativas e majoritária, observa ele que...

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