A Aplicabilidade das Leis nos 11.340/06 e 9.099/95 Relativamente à Suspensão Condicional do Processo, sob o Prisma da Constituição Federal

AutorCarlos Eduardo Contar
Páginas295-313

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1. Introdução

O presente trabalho versa sobre a inovação legislativa ocorrida no Brasil em 2006, que foi resultado de intensa campanha pela normatização de uma "ação afirmativa" pertinente à violência doméstica contra as mulheres, especialmente, bem como das suas consequências no âmbito processual penal.

As ações afirmativas têm como objeto aniquilar ou reduzir - por intermédio de alterações legislativas ou de atuações do Poder Executivo - situações de exclusão social ou de discriminações prejudiciais a determinados grupos sociais; no mundo inteiro, essas ações têm sido alvo de intensas discussões, tantos são os seus diver-sos resultados, tendo em vista que a eficácia de muitas dessas medidas pode ser facilmente questionada, como é o caso das cotas para hipossuficientes e negros em universidades.

No caso da violência contra as mulheres, não é objeto da referida ação positiva a violência que atinge a todas - nas ruas e em situações fora do lar ou em relações individuais - mas tão somente aquelas que possuem natureza conjugal (casamentos, uniões estáveis etc).

Interessante observar que a relação fundamental entre a Lei Maria da Penha e os movimentos nacionais e internacionais pela implementação de medidas que

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derivem das "ações afirmativas" é diversa das demais formas conhecidas, porque, no caso em apreço, não fica nítido o caráter temporário da aplicação da lei.

E desse descompasso nasceu um problema que gerou tantas críticas e discussões: o conserto do "tecido social", que deveria ocorrer por intermédio de medidas de impacto cultural, social e econômico, operou-se por meio da instituição de mudanças definitivas na legislação penal - aumentando-se as penas - e processual penal, vedando a adoção de técnicas de simplificação presentes nos procedimentos dos Juizados Especiais Criminais.

2. Aspectos gerais das legislações analisadas

Trata-se do estudo da Lei nº 11.340/06 - denominada de Maria da Penha em homenagem à vítima de violência doméstica mais conhecida no país - e das implicâncias que essa novel legislação desencadeou em nosso sistema jurídico, haja vista que ela decorre da observação à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica, conforme explica a doutrina:

"Veio a Lei Maria da Penha para atender os compromissos assumidos pelo Brasil em tratados internacionais, que impõem o reconhecimento do direito das mulheres como direitos humanos. Na sua ementa é feita referência à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica, ratificada pelo Brasil em 1995. Neste instrumento está proclamado que a violência doméstica constitui violação dos direitos humanos. Não é por outro motivo que afirma (art. 6º): ‘A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos.’"1O estudo das aparentes incompatibilidades entre as referidas normas jurídicas passa pela análise do Projeto de Lei nº 4.559/042, que as originou.

A tramitação do PL nº 4.559/2004 é imprescindível para compreender o cerne do equívoco provocado pelo legislador - no intervalo de tempo ocorrido entre a apresentação do Projeto e a aprovação da sua redação final - na elaboração da norma.

Na Exposição de Motivos - item nº 10 - do PL nº 4.559/2004, restou evidenciado que a objetivo original do Poder Executivo era atender aos reclamos do Relatório nº 54 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, no sentido de simplificar os procedimentos relacionados ao atendimento de casos de violência doméstica contra as mulheres, nos seguintes termos:

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"10. Em abril de 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, órgão responsável pelo recebimento de denúncias de violação aos direitos previstos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e na Convenção de Belém do Pará, atendendo denúncia do Centro pela Justiça pelo Direito Internacional (CEJIL) e do Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), publicou o Relatório no 54, o qual estabeleceu recomendações ao Estado Brasileiro no caso Maria da Penha Maia Fernandes. A Comissão concluiu que o Estado Brasileiro não cumpriu o previsto no artigo 7º da Convenção de Belém do Pará e nos artigos 1º, 8º e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Recomendou o prosseguimento e intensificação do processo de reforma que evite a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra a mulher no Brasil e, em especial recomendou ‘simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual, sem afetar os direitos e garantias do devido processo’ e ‘o estabelecimento de formas alternativas às judiciais, rápidas e efetivas de solução de conflitos intrafamiliares, bem como de sensibilização com respeito à sua gravidade e às consequências penais que gera.’"

(Destaques não originais)

O item nº 33 da Exposição de Motivos do referido Projeto de Lei apresenta outra preocupação do legislador: a ausência de estrutura dos Juizados Criminais para atender aos casos de violência doméstica - que são a maioria, segundo os estudos até então realizados - haja vista que os mecanismos necessários à aplicação das medidas de proteção às vítimas e de repressão diferenciada aos ofensores são parcialmente incompatíveis com o procedimento da Lei nº 9.099/95.

Mesmo assim, a redação inicial do Projeto não falava em vedação absoluta à aplicabilidade da Lei nº 9.099/95 aos casos de violência doméstica; a questão é que os artigos 12, 13 e 29 - na redação original do Projeto - possibilitavam expressamente o processamento de casos de violência doméstica segundo as regras dos Juizados, em conjunto com a lei processual penal e civil e a própria legislação que estava sendo criada, obviamente, senão veja-se:

Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro do fato, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, além daqueles já previstos no Código de Processo Penal e na Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995:

I. Colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas circunstâncias;

II. Ouvir a ofendida;

III. Ouvir o indiciado e as testemunhas;

IV. Determinar que se proceda ao exame de corpo de delito e requisitar os exames periciais necessários;

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V. Averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual, familiar e social, sua atitude e estado de ânimo antes e depois do fato e durante ele, e quaisquer outros elementos que contribuam para a apreciação do seu temperamento e caráter;

VI. Ordenar a identificação do indiciado e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes; e

VII. Remeter à autoridade judiciária o expediente lavrado.

§ 1º O previsto no inciso IV deste artigo implicará no encaminhamento prioritário da ofendida, quando necessário à preservação das provas.

TÍTULO IV

DOS PROCEDIMENTOS

CAPÍTULO I

DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 13. Ao processo, julgamento e execução das causas cíveis e criminais em que esteja caracterizada a violência doméstica e familiar contra a mulher, aplicar-se-ão os Códigos de Processo Penal e Civil e a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, no que não conflitarem com o procedimento estabelecido nesta Lei.

Art. 29. Ao processo, julgamento e execução dos crimes de competência dos Juizados Especiais Criminais em que esteja caracterizada violência doméstica e familiar contra a mulher, aplica-se a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, no que não conflitar com o estabelecido nesta Lei.

Justamente por possibilitar a aplicação da Lei 9.099/95 e das legislações processuais penal e civil, sem estabelecer parâmetros exatos para impedir problemas de competência e de procedimentos, é que a redação acima não foi mantida durante a tramitação do Projeto de Lei.

As mudanças ocorridas pretendiam apenas evitar incompatibilidades, mas, para atingir esse intento, acabou por exagerar - por equívoco de técnica redacional - na restrição à aplicação da Lei dos Juizados aos casos de violência doméstica contra a mulher.

Assim, no decorrer da tramitação do PL nº 4.559/2004, foram excluídos todos os dispositivos que previam a aplicação da Lei dos Juizados Especiais Criminais, e incluída uma só regra que mencionava a referida legislação, vedando completamente a utilização de qualquer procedimento ou benefício lá previsto.

Observe-se que a comparação entre o aludido Projeto (texto original) e a sua redução final, leva à conclusão de que o legislador pretendia somente evitar a confusão entre o procedimento dos Juizados Especiais Criminais e os procedimentos da Lei nº 11.340/06, que são mais amplos e complexos; o desígnio não foi vedar de forma absoluta a aplicação das regras da Lei nº 9.099/95, mas sim reordenar os procedimentos, na medida do possível.

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Entretanto, a redação final não atendeu à própria Exposição de Motivos do Projeto de Lei, que fazia referência expressa ao Relatório nº 56 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, no sentido de se buscar a simplicidade no que pertine ao processamento, à tomada de medidas de proteção e do julgamento dos feitos relacionados à violência doméstica cometida contra mulher.

Há que se ressaltar, outrossim, que os artigos 35 e 36, da redação original do Projeto nº 4.559/06, permitiam a realização de proposta de aplicação imediata de pena restritiva de direitos, ficando vedadas as penas de prestação pecuniária, pagamento de cesta básica e multa; desse modo, a crítica mais acirrada feita à Lei no 9.099/95 não teria mais razão de...

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