(Anti-)Direito e força de lei/ lei.

AutorWillis Santiago Guerra Filho
CargoProfessor Titular do Centro de Ciências Jurídicas e Políticas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
Páginas65-81

Page 65

Max Weber (1974, p. 98), em uma conferência célebre, tratando da política como vocação profissional (“Politik als Beruf”), logo no início apresenta a política como significando “a participação no poder ou a luta para influir na distribuição de poder”. Quanto ao direito, ele tem indubitavelmente relação com o poder, uma relação tão estreita que, muitas vezes, se encontra quem o reduza às relações de poder, tendo como conseqüência a politização absoluta – tendencialmente absolutista, autoritária, quando não, totalitária – do direito, que assim é degradado à condição de uma espécie de disfarce da política, mero instrumento do poder. Este modo reducionista de tratar o direito, além de outras manifestações sociais, como a religião, a arte e a própria política, pode ser encontrado entre defensores de um marxismo vulgar, que entendemos uma deturpação do pensamento original deste excepcional conhecedorPage 66(também) do direito, até por sua formação acadêmica, que foi Karl Marx (cf., v.g., Willis Santiago Guerra Filho, 2001, p. 36 ss., bem como Fernando Pavan Baptista, 2006). Ao mesmo tempo, há quem proceda da maneira inversa, patrocinando uma redução, ainda que metodológica, da política, se não ao direito, a uma forma jurídica de exercício do poder, que é aquela predominante na modernidade, qual seja, o Estado. Exemplo disso estaria presente nas Escolas de Positivismo jurídico normativistas, como aquelas kelsenianas, mas também entre sociólogos, como o apenas referido Max Weber, que completa a definição acima apresentada de política como envolvendo relações de poder “seja entre Estados ou entre grupos dentro de um Estado” (id. ib.), sendo que já no início mesmo de seu discurso Weber anunciará o recorte por ele adotado, para tratar de assunto tão vasto, envolvendo a política, ao buscar compreendê-la como “apenas a liderança, ou a influência sobre a liderança, de uma associação política, e, daí, hoje, de um Estado (id., grifos no or., p. 97).

Na seqüência de sua palestra, Weber se indaga sobre o que seria, sociologicamente – de sua perspectiva, compreensiva, verstehende, isto é, hermenêutica, logo, também, filosófica, por levar em conta o sentido, valorativo, atribuído a suas ações pelos sujeitos na sociedade - uma associação qualificada como “política” e, especificamente, dentre elas, aquela que se apresenta como um “Estado”, adiante qualificado como “moderno”. Após descartar a possibilidade de uma definição teleológica, a partir dos fins de tais associações, pois esses poderiam ser, virtualmente, qualquer um, sem que se possa determinar nenhuma dessas tarefas como peculiares dessas associações, enquanto associações políticas, Weber se propõe, então, a defini-las pelos meios específicos empregados para a consecução de finalidades propriamente políticas. Nesse passo, vale-se de um pronunciamentoPage 67feito por León Trotski, sobre a força como o fundamento de todo Estado, para consagrar o uso da força física como o meio empregado tipicamente pelas associações políticas enquanto tais. Daí passa a se referir a tal força por uma denominação mais precisa, a de “violência”, sendo a utilização dela por certas instituições sociais a condição mesma para a existência do Estado, que mesmo não tendo apenas esse meio para se impor, nem se deva considerá-lo, como em associações políticas tidas por predecessoras do Estado, a exemplo do clã, um meio normal, nem por isso deixa de ser considerado por Weber o meio específico desse Estado, que na modernidade apresenta ainda relações “especialmente íntimas” com a violência (id., p. 98). Em seguida, Weber apresenta sua definição, clássica, do Estado como “uma comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território” (id. ib., grifos no or.). A questão fundamental, nesse conceito, que é um conceito substancial da política tendo como forma o direito, passa a ser, como se percebe na continuação do texto de Weber, a de caracterizar a legitimidade do emprego da violência, questão que o A. coloca da seguinte maneira: “Quando e por que os homens obedecem?” (ob. cit., p. 99). Eis a questão que, dependendo do modo como se pretenda respondê-la, nos situará seja no terreno da filosofia política, seja naquele da filosofia jurídica. A resposta de Weber pretende localizar-se no campo da ciência, ainda que social, sendo dada mais para a questão do “como” se obedece - de modo funcional, portanto -, através da famosa tipologia das três formas “puras” de legitimação, a tradicional ou consuetudinária, a carismática ou pessoal, e a legal ou racional, tipicamente moderna, caracterizada como uma “fé na validade do estatuto legal, baseada em regras racionalmente criadas” (id. ib, grifos no or.), tipos esses que se combinam para formar aqueles de fato e empiricamente existentes. DePage 68passagem, vale ainda lembrar que também para o positivismo jurídico normativista kelseneano a ordem jurídica, a que se reduz o direito e o Estado em sociedades “evoluídas”, aquelas modernas, é concebida como uma “ordem coativa” (Zwangsordnung), sendo coação um termo mais brando para referir à violência, quando associada com uma tal ordem jurídica, cuja legitimidade decorreria da legalidade e procedimentos correspondentes – pelo menos formalmente, sendo este o ângulo que interessaria ao estudo científico do direito como Kelsen, sabidamente, propugnava que se o empreendesse. É interessante notar essa coincidência entre o positivismo normativista, que se pretendia purificado de qualquer noção extra- jurídica, com uma perspectiva, igualmente positivista, porém sociológica. E essa não é a única remissão que se encontra na teoria pura do direito à dimensão sociológica, pois o próprio conceito de validade das normas jurídicas e da ordem jurídica como um todo a que elas pertencem, adotado por esta teoria, estritamente formal, correspondente à existência mesma dessas normas do direito positivo, depende de um “mínimo de eficácia”, de acatamento fático e obediência regular (cf. H. Kelsen, 1960, p. 208, 216 ss.). Já com um “mínimo de justiça” não se preocupa tal teoria, em conformidade com verdadeiros mitos, como o da objetividade científica e neutralidade axiológica, sobre os quais se erige, imperceptivelmente, supondo com isso superar modos “primitivos” de pensamento, dominados por uma crença mágica no poder encantatório das palavras, vindo a perceber só muito mais tarde, quase tarde demais, que toda sua construção da ordem jurídica escalonada e justificada por uma norma hipotética fundamental, não passava de mais uma ficção (cf. id., p. 206 e seg.), sendo o correspondente direito uma ficção coletiva, coercitiva, por jurídica, típica da modernidade.

Page 69

De uma perspectiva filosófica, contudo, podemos – e, a meu ver, devemos – nos ocupar dessas questões, que não são consideradas aptas a um tratamento científico, de acordo...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT