500 anos de Direito Administrativo Brasileiro

AutorProfª Maria Sylvia Zanella Di Pietro
CargoProfessora Titular de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Páginas1-24

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1. Introdução

O direito administrativo, como ramo autônomo, não tem, evidentemente, 500 anos de existência, nem no Brasil nem em qualquer outro país do mundo. Ele nasceu em fins do século XVIII e início do século XIX.1

Isto não significa, contudo, que inexistissem anteriormente normas que hoje comporiam esse ramo do direito, pois onde quer que exista o Estado, existem órgãos encarregados do exercício de funções administrativas. O que ocorre é que tais normas se enquadravam no jus civile, da mesma forma que nele se inseriam as demais, hoje pertencentes a outros ramos do direito.

Na Idade Média não houve ambiente propício para o desenvolvimento do direito administrativo, porque era a época das monarquias absolutas, em que todo poder pertencia ao soberano; a sua vontade era a lei, a que obedeciam todos os cidadãos, justificadamente chamados servos ou vassalos. A vontade do monarca era a lei.

A formação do direito administrativo teve início, juntamente com o direito constitucional e outros ramos do direito público, a partir do momento em que começou a desenvolver-se - já na fase do Estado Moderno - o conceito de Estado de Direito, estruturado sobre o princípio da legalidade (em decorrência do qual até mesmo os governantes se submetem à lei, em especial à lei fundamental que é a Constituição) e sobre o princípio da separação de poderes, que tem por objetivo assegurar a proteção dos direitos individuais, Page 2 não apenas nas relações entre particulares, mas também entre estes e o Estado.

Daí a afirmação de que o direito administrativo nasceu das Revoluções que acabaram com o velho regime absolutista que vinha da Idade Média. Nas palavras de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (in Princípios gerais de direito administrativo, Rio de Janeiro, Forense,1979, v. I:52), o direito administrativo "constitui disciplina própria do Estado Moderno, ou melhor, do chamado Estado de Direito, porque só então se cogitou de normas delimitadoras da organização do Estado-poder e da sua ação, estabelecendo balizas às prerrogativas dos governantes, nas suas relações recíprocas, e, outrossim, nas relações com os governados. Na verdade, o Direito Administrativo só se plasmou como disciplina autônoma quando se prescreveu processo jurídico para atuação do Estado-poder, através de programas e comportas na realização das suas funções".

Pode-se afirmar que o direito administrativo teve origem na França, em decorrência da criação da jurisdição administrativa (o sistema do contencioso administrativo), ao lado da jurisdição comum. Foi pela elaboração pretoriana dos órgãos de jurisdição administrativa, em especial de seu órgão de cúpula, o Conselho de Estado, que se desenvolveram inúmeros princípios informativos do direito administrativo, incorporados ao regime jurídico de inúmeros outros países.

O direito administrativo francês nasceu como direito não legislado, porque formulado pelo juiz para suprir as lacunas da legislação, então inexistente. Daí a contribuição do Conselho de Estado para a elaboração de princípios informativos do direito administrativo, ainda hoje vigentes em vários sistemas: o da responsabilidade civil da Administração, o da alteração unilateral dos contratos administrativos, os concernentes ao regime jurídico especial dos bens do domínio público, a teoria da nulidade dos atos administrativos. Ele se formou como disciplina normativa referida a um sujeitoa Administração Pública, com base em determinados conceitos, como os de serviço público, autoridade, potestade pública, especialidade de jurisdição, nenhum deles inspirado no direito privado.

Segundo Georges Vedel (in Droit Administratif, Paris, Presses Universitaires de France, 1964, p. 57), quatro princípios essenciais informam o direito administrativo francês: o da separação das autoridades administrativa e judiciária, que determina as matérias para as quais os tribunais judiciais são incompetentes; o das decisões executórias, que reconhece à Administração a prerrogativa de emitir unilateralmente atos jurídicos que criam obrigações para o particular, independentemente de sua concordância; o da legalidade, que obriga a Administração a respeitar a lei; o da responsabilidade do poder público, em virtude do qual as pessoas públicas devem reparar os danos causados aos particulares.

Do mesmo modo que o direito francês e em grande parte sob sua inspiração, o direito administrativo brasileiro não nasceu, como ramo autônomo, enquanto esteve sob o regime da monarquia absoluta. Page 3

Assim sendo, para falar em 500 anos de Direito administrativo brasileiro, tem-se que retroceder para um período em que o direito administrativo ainda não existia, a não ser como um conjunto de normas que se aplicavam à Administração Pública, mas que não estavam sistematizadas em ramo autônomo, seja pela doutrina, seja pelo direito positivo.

A grosso modo, pode-se dividir a análise do tema em quatro fases:

  1. período colonial, sob o domínio da legislação portuguesa;

  2. período imperial, já com início da influência do direito francês, decorrente da criação do Conselho de Estado;

  3. período republicano, até a Constituição de 1988, em que se plasmou o direito administrativo como ramo autônomo;

  4. período atual, posterior à Constituição de 1988, quando o direito administrativo altera, de certa forma, o seu perfil, em decorrência da instauração do Estado Democrático de Direito, dos princípios informadores da Reforma do Estado e da globalização.

2. Período do Brasil colônia

Quando o Brasil foi descoberto, em 22-4-1500, tornando-se colônia de Portugal, estavam em vigor as Ordenações Afonsinas, que correspondem ao primeiro dentre os três corpos de leis que os Reis de Portugal mandaram elaborar no período entre a primeira metade do século XV e o início do século XVII.

As Ordenações Afonsinas, de D. Afonso V, datam de 1446 ou 1447 e vigoraram até 1511, quando foram substituídas pelas Ordenações Manuelinas, de D. Manuel I, o Venturoso. Compreendem cinco livros:

Livro I - Regimento dos Magistrados e Oficiais de Justiça, exceto o de Desembargo do Paço, de 1582;

Livro II - Define as relações entre o Estado e a Igreja, trata de direitos e bens da Coroa, privilégios do Fisco, da Igreja e dos donatários e proprietários de terra;

Livro III - Regulamenta os processos cíveis e criminais;

Livro IV - Cuida do direito das pessoas e das coisas;

Livro V - Trata do direito penal, inclusive do militar.

Não tiveram praticamente qualquer aplicação no Brasil. Embora, no plano teórico, fossem aplicáveis, já que estavam vigentes em Portugal, no plano prático prevaleciam os usos e costumes. Cabe salientar que a Page 4 contribuição dos índios para a formação do direito brasileiro foi praticamente nula.

Mesmo as Ordenações Manuelinas, editadas em 1521, não tiveram maior aplicação na colônia recém conquistada, a não ser pelos chamados juízes de Vintena, que correspondiam a órgãos descentralizados que exerciam jurisdição nas várias localidades que começavam a se formar.

Em 1613, Filipe II de Espanha (Filipe I de Portugal) baixa as Ordenações Filipinas, também chamadas de Ordenações do Reino, que vigoraram no Brasil mesmo após a Independência. Só foi deixando de ser aplicada na medida em que foram baixados os grandes Códigos; primeiro, o Código Criminal do Império do Brasil, de 16-12-1830 (que revogou o Livro V das Ordenações); depois o Código de Processo Criminal, de 29-11-1832, o Código Comercial, de 25-6-1850, e, posteriormente, o Código Civil, de 1º-1-1916. Essas Ordenações vigoraram no Brasil mesmo depois de sua revogação em Portugal, em 1º-7- 1867, quando aprovado o Código Civil português.

No Brasil, após a Independência, D. Pedro I assim decretou, por lei de 20-10-1823:

"As Ordenações, leis, regimentos, alvarás, decretos e resoluções promulgadas pelos reis de Portugal, e pelas quais o Brasil se governava até o dia 25-4-1821, em que S.M. Fidelíssima, atual Rei de Portugal e Algarves se ausentou desta Corte, e todas as que foram promulgadas daquela data em diante pelo Sr. D. Pedro de Alcântara como regente do Brasil enquanto Reino, e como Imperador Constitucional dele, que se erigiu em Império, ficam em inteiro vigor na parte em que não tiverem sido revogadas para por elas se regularem os negócios do interior do Império, enquanto se não organizar um novo código, ou não forem especialmente alteradas ."

Conforme ensina Virgínia Maria Almoêdo de Assis, em texto apresentado no Seminário O Mundo que o Português criou, "a formação de um aparelhamento administrativo no Brasil pela coroa portuguesa tem início com o estabelecimento das Donatárias em 1532, momento em que a política lusa norteava-se no sentido de transformar a terra conquistada em colônia de exploração sob o esteio jurídico do Tratado de Tordesilhas e de várias bulas pontifícias".

Demonstra a autora o papel que o clero desempenhou na colonização do Brasil, onde "o confronto entre culturas e técnicas foi inevitável", não sendo capaz a empresa militar de "sozinha controlar a insubmissão dos naturais da terra e a sua organização tribal, o que se configurou sério empecilho à empresa mercantilista colonizadora".

Daí a ação missionária e evangelizadora exercida pelas ordens religiosas junto aos indígenas. A autora cita a esse respeito lição de Maria do Céu Medeiros (in Os Oratonianos de Pernambuco. Recife: UFPE, dissertação, 1981), no sentido de que "....a Igreja ajudou a enorme massa de desprovidos de bens materiais a pensar como o desejavam os donos do poder, e não como requeria a sua condição material no processo produtivo". Page 5

Por essa razão, afirma Virgínia de Assis, "no Brasil, a rede de alianças formada por clero, colonos e coroa, resultou numa organização eclesial, mas não eclesiástica, onde não se tinha...

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