O animal não-humano e seu status moral para a ciência e o direito no cenário brasileiro

AutorAnamaria Gonçalves dos Santos Feijó/Cleopas Isaías do Santos/Natália de Campos Grey
CargoDoutora em Filosofia, com ênfase em Bioética, pela Unversidade de Buenos Aires/Argentina/Mestrando em Ciências Criminais pela PUCRS; Especialista em Direito Penal Econômico e Europeu/Mestre em Direito (PUCRS)
Páginas153-167

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1. Introdução

No cenário brasileiro, a ética animal apresenta-se como um tópico relativamente novo e cada vez mais em evidência, pedindo reflexões sérias a partir de profícuas discussões. O debate foi ampliado pela recente aprovação de uma lei oficial que norteia a utilização de animais não-humanos no ensino e pesquisa do

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território brasileiro, fomentando o diálogo entre cientistas e filósofos da moral em torno desta temática.

No Brasil, a herança do uso indiscriminado de animais apresenta-se tão arraigada à nossa cultura que chega a causar estranheza a muitos o fato de algumas pessoas se dedicarem a tentar estabelecer limites a esta utilização. Porém já se percebe, de forma tímida, a busca por uma alteração do status moral do animal não-humano a partir de uma nova releitura de nosso ordenamento jurídico onde se pode detectar, em algumas situações, a aceitação dos animais não-humanos como sujeitos de direito, sendo reconhecidos sua dignidade e valor intrínseco.

Estas discussões de vanguarda estão apenas começando no Brasil, embora tenhamos que reconhecer que a tutela legal dos animais já venha sendo uma preocupação brasileira que data do período colonial porém sem a consideração desses como indivíduos ou sujeitos de direitos, mas sim como integrantes de um meio ambiente a ser preservado e protegido. Nos debates atuais em torno da ética animal, argumentos provenientes de antagônicas correntes (como a abolicionista, defendendo os direitos dos animais, e a reformista, clamando por um uso adequado dos mesmos) vêm aparecendo com freqüência, mas ainda é necessário um bom amadurecimento desses tópicos, de modo a que possam criar raízes e estabelecer mudanças efetivas na sociedade brasileira, ainda extremamente antropocêntrica.

Este artigo busca, então, trazer um panorama geral do Brasil no que tange às discussões sobre o animal não-humano. Para tanto, se abordarão não só noções no âmbito da ética, mas também as normas brasileiras que tutelam os animais e as perspectivas que se descortinam desta reflexão hodierna em nosso país.

2. Correntes filosóficas atuantes no país

No Brasil constata-se a presença de duas correntes contemporâneas atuantes em se tratando do tema ética animal: a cor-

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rente abolicionista e a corrente reformista, ambas norteando distintas posições e antagônicos argumentos nos moldes do que vem acontecendo no mundo todo.

A corrente abolicionista aceita os animais não-humanos como seres com valor intrínseco, como fins em si mesmos, nos moldes da escola kantiana ampliada para além da vida humana (Feijó, 2008), defendendo a total abolição de todo e qualquer uso de animais pelo homem. Um dos maiores expoentes do abolicionismo é o filósofo contemporâneo Tom Regan, o qual acredita que o certo de uma ação depende não do valor das conseqüências dessa ação, mas do correto tratamento aos seus sujeitos no âmbito individual, incluindo-se aí o âmbito individual dos animais não-humanos (Regan, 1983).

Em nosso país, a corrente abolicionista vem ganhando espaço e tem influenciado vários movimentos reivindicatórios que originaram novas leis ou levaram a novas interpretações das leis mais antigas. Já existe, inclusive, profissionais do Direito no Brasil vinculados a esta corrente e que defendem a necessidade da existência de leis que propiciem a abolição do uso de animais não-humanos em território nacional, fato este não imaginável há alguns anos atrás.

O abolicionismo, todavia, não conquista ainda grande popularidade entre boa parcela dos profissionais e pesquisadores das áreas biomédicas, os quais, quando provocados, em geral inclinam-se para outra corrente: a chamada reformista (welfarista), ou corrente do bem-estar animal. Sabe-se que a concepção do bem-estar animal iniciou em 1926, com a fundação da University of London Animal Welfare Society (ULAWS), pelo prefeito Charles Hume, baseada na premissa de que o "problema animal deve ser resolvido com uma base científica com o máximo de simpatia mas um mínimo de sentimentalismo" (Hau e Van Hoosier, 2003, p. 102).

A corrente do bem-estar animal se funda na doutrina utilitarista de Jeremy Bentham, sendo que seu maior representante da

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atualidade é certamente o autor e filósofo Peter Singer, segundo o qual, em que pese o bem-estar ser um conceito ambíguo, a capacidade de sofrimento de um ser é o marco para conceder a este uma igual consideração dos interesses, tais como o de não ter a si infligida a dor (Singer, 1990). Em nosso país, essa corrente sustenta modificações graduais de atitudes e concepções dos seres humanos em relação aos animais, o que se reflete em legislações atualizadas e na exigência de qualidade da pesquisa científica, por exemplo, dentro de padrões éticos.

Os cientistas welfaristas buscam defender uma situação de bem-estar animal na criação e uso de animais, aceitando a alteração de determinadas condutas quando essas podem minimizar a dor e o sofrimento do animal. Na área científica, tende-se ao seguimento da "teoria dos 3R’s", proposta por Burch e Russel em 1959. Os 3R’s referem-se às expressões reduction, refinement e replacement, que significam respectivamente reduzir, aperfeiçoar e substituir. O principal propósito almejado é a substituição (replacement) dos testes em animais por métodos alternativos, sendo que, na hipótese de haver experiências que realmente precisassem utilizar animais, o intuito se daria no sentido de reduzir (reduction) o número de animais utilizados e aperfeiçoar (refinement) as técnicas de forma que fosse provocado o menor sofrimento possível aos animais (Russel e Burch, 1992).

Essa teoria recebe críticas severas por parte de defensores dos animais que argumentam que os 3R’s, na verdade, legitimam a experimentação animal, visto que seu princípio admite como válido o simples refinamento das experiências e a mera redução dos animais usados, quando o correto seria a aplicação da subs-tituição dos testes em animais por métodos que não os utilizassem (Greif e Tréz, 2000). É importante, porém, salientar que os 3R’s não são uma teoria ética e sim uma proposta procedimental com vistas de estabelecer limites ao uso de animais (o que é extremamente necessário!), mas ela só será...

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