Os animais e o Direito. Novos Paradigmas

AutorHaydée Fernanda Cardoso
CargoBacharel em direito - UFPA
Páginas115-147

Ver nota 1

"Os desafios aí estão: para quando um sistema jurídico reconhecedor de direitos fundamentais da natureza? Enquanto não se consagrarem, em termos jurídicos, direitos dos animais e direitos de plantas - direitos dos seres vivos ao lado dos direitos do homem -, os ecologistas continuarão a olhar para o Direito do Ambiente como a expressão mais refinada da razão cínica."

J. J. Canotilho2

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1. Introdução

Ao longo da história a humanidade enfrentou diversos períodos de crise, pois ela, a crise, revela-se o conduto de desenvolvimento e crescimento, e não somente para a humanidade, mas também para os sistemas bioquímicos existentes no planeta. A crise é uma constante máxima de transformação e desenvolvimento, não devemos teme-la, devemos enfrenta-la sabendo que como resultado muito provavelmente surgirá uma mudança, um melhoramento.

Interessante é notar que tudo surge nos sistemas bioquímicos, mesmo as figuras morais, abstratas e subjetivas que nascem na mente, pois o cérebro é órgão dominante de todo o corpo que o possui, conduzindo-se este segundo a lógica de funcionamento mental, baseada em processos bioquímicos. Mesmo quando responde aos estímulos emanados do corpo, a mente controla a forma de reação e intensidade, a forma de expressão externa, sendo este princípio utilizado pelos iogues e outras filosofias e terapias que desenvolvem o controle ou o autocontrole através da mente.

Certo é que nível de domínio tão elevado, a ponto do controle voluntário da dor em alguns casos, é possibilidade exclusiva dos humanos, e dentre eles somente de alguns que o desenvolveram através do uso da razão.

O fato de que os outros animais não possuírem nível de funcionamento cerebral tal não elide a existência de sensações e

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sentimentos neles, especialmente quando se tratar de sofrimento e afetividade, os faz, mais ainda, dignos de proteção.

Temos uma realidade sobre a qual vê-se uma efusão de discussões, onde chovem fundamentos e questionamentos, e onde interesses digladiam-se havendo um único real interessado: aquele que sofre, a vítima de condutas praticadas pelo homem, dignas de reprimenda adequada.

Há a necessidade de encontrar-se uma saída para a garantia da qualidade de vida a todos os seres do planeta - e não somente ao homem -, tornar-se realidade.

Na busca de uma saída racional e juridicamente possível, analisamos a realidade dos fatos, primando pela lógica pautada na interdisciplinaridade possibilitadora de uma aplicação jurídica mais equânime e uma hermenêutica mais consistente, surgindo assim, um novo padrão de ética em prol de uma mais verdadeira justiça.

2. Seres vivos e objetos

A dogmática jurídica brasileira3incluiu o indivíduo animal ou a coletividade fauna, dentre os objetos de direito, ao traçar, no art. 82 do atual Código Civil, o conceito de bens móveis, completado no art. 83, II, do mesmo diploma, dando-lhes a denominação técnica de bens semoventes. Assim também, ao pô-los sob a propriedade do Estado na Lei de Proteção à Fauna, o que está superado desde a entrada em vigor da Constituição de 1988, passando a bem de uso comum do povo, e o Estado a mero gestor, do mesmo modo que todo o patrimônio público.

O Decreto 24.645 de 1934, tem entendido doutrina minoritária, que teria feito os animais sujeitos de direitos em nosso ordenamento4, vez

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que os coloca como tutelados do Estado, sendo "assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público, seus substitutos legais, e pelos membros das sociedades protetoras dos animais"5, no entanto, estamos sob um sistema de direito constitucional, no qual a Carta Magna está no topo da hierarquia, portanto, muito embora este decreto tenha sido recepcionado com força de lei ordinária pelo novo sistema constitucional, não diremos que o artigo foi revogado, pois ele pode ser interpretado à luz da Lei da Ação Civil Pública, que segue a mesma lógica.

A proteção jurídica do animal na legislação brasileira é feita, segundo a doutrina, ora pela função ecológica exercida pela fauna, ora pelo sentimento de piedade do homem para com os animais, devido à capacidade de colocar-se no lugar do animal e sensibilizar-se, o que se explica pelas semelhanças biológicas e comportamentais maiores que as encontradas entre homens e vegetais ou minerais.

Neste diapasão, de acordo com a doutrina dominante, o direito ambientalista constitucional brasileiro abraçou a corrente antropocentrista, existindo ainda, doutrina intermediária, entendendo pelo caráter híbrido: ora antropocentrista ora biocentrista6.

O caráter antropocentrista está presente na proteção em função do equilíbrio ecológico, principalmente, onde "o intuito era a ‘domesticação’ do homem coligado à manutenção dos Animais como garantidores da sobrevivência humana"7, pois é a corrente de pensamento que vê o homem como centro e fim da proteção ambiental, que entende os recursos naturais (dentre eles a fauna), apenas em prol dos objetivos e bem-estar humanos.

Como bem público, semelhantemente aos demais entes ambientais, a fauna é classificada entre os bens de uso comum do povo, modalidade conceituada no art. 99, II, do Código Civil Brasileiro vigente, e que,

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apesar de os bens públicos estarem sob regime jurídico próprio, dandolhes todos os atributos de uso, gozo e fruição, inerentes ao domínio em geral, porém, com limitações próprias à sua natureza.

Inalienáveis, imprescritíveis e impenhoráveis, tais características dos bens de domínio público não são absolutas às coisas que compõem o patrimônio do Estado, sendo condicionadas ao interesse público sobre o bem, e não apenas à sua destinação e afetação, porém, diríamos que relativamente aos animais, os quais "são coisas que não são coisas", é preciso um olhar diferenciado, pois o patrimônio genético tem valor próprio (inestimável, na verdade), ou o que dizer sobre a biopirataria e o tráfico de animais, que a alimenta, é o terceiro maior do mundo8É diferente o tratamento pelo caráter ontológico do bem (vida) e das questões éticas a ele ligadas, e, especialmente, porque muitos animais têm capacidades biopsíquicas que lhes permitem sofrer das mais diversas formas e semelhantemente ao homem.

Os bens faunísticos são inalienáveis, porém, acreditamos que esta inalienabilidade é limitada aos animais pertencentes à fauna silvestre, pois é perfeitamente legal o comércio de animais domésticos (apesar de não ser ético), e não apenas, é também estimulado através de feiras e exposições, no entanto, sabe-se que é ensejador de muitos abusos e crueldades. E ainda, temos um regime jurídico privado do animal no código civil, sobre o qual incide toda a teoria geral das obrigações, além do da responsabilidade civil, expressamente o art. 936, sobre a obrigação de indenizar, onde a responsabilidade é do dono do animal.

Numa interpretação estrita do texto civilista, entenderíamos que existem no direito brasileiro, dois regimes jurídicos sobre entes da fauna, porém, considerando a hierarquia de normas de um sistema

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constitucional, fica clara a impropriedade do termo dono, utilizado no referido artigo, vez que a proteção constitucional do animal é generalista, sendo impossível a apropriação privada do bem de uso comum do povo. É possível sim, o uso exclusivo, porém, submetido aos limites legais, pois é interesse metaindividual o bem-estar animal, nos termos da legislação vigente, e seria um contra-senso a apropriação privada, sendo ainda, uma impertinência a apropriação, o uso e o gozo sobre a vida, especialmente quando isto tem dado azo ao abuso de direitos do homem sobre os animais.

O próprio Prof. Paulo Affonso Machado adverte que "domínio eminente não traduz necessariamente direito de propriedade sobre um determinado bem"9. O que se tem no regime privado é simplesmente uma imputação de responsabilidade em caso de dano, vez que cabe à pessoa que cuida do animal, prover a contenção adequada com cercas e coleiras ou, no caso de dano provocado, por ter ordenado o animal que responde a comando, por exemplo.

Tanto se prova existência de um único regime jurídico sobre a fauna, que é permitido ao particular proibir a caça no interior de sua propriedade quando na região seja permitido, reservar a caça para si ou franquear a entrada mediante remuneração, quando ela seja permitida na região, mas não pode fazê-lo em épocas ou regiões onde não haja permissão, pois a fauna está sob o regime de direito público, sendo o Estado seu gestor10, e por isso a caça não é acessório do solo, segundo Clóvis Beviláqua11.

Há um grande problema, atualmente, sobre posse responsável de animais domésticos, de maneira geral, seja animais de companhia, seja animais de tração urbanos e rurais, seja animais destinados a corte, pois é comum o abuso de direitos sobre estes animais ao confundir-se a

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posse com a propriedade, sendo que, ao particular somente é permitida a posse sobre o animal, já que todos os entes faunísticos estão em patamar de igualdade na atual legislação pátria, e a posse não dá o direito de disposição, podendo-se então questionar a destinação dada aos animais de corte, e mesmo a animais de companhia, que são grandes vítimas de uma verdadeira indústria da vida.

Ora, o direito de uso é feito nos limites da Lei, e o abate de animais, por exemplo, é rigidamente normatizado (embora a ilegalidade seja mais comum na mesa do brasileiro). Havendo abuso de direito por parte daquele que não cumpre as determinações nela contidas, poderá ele sofrer imputação criminal e/ou civil, embargo ou suspensão das atividades ou cancelamento da licença. Ainda, o abate de animal para consumo é feito no interesse dos titulares do direito sobre os bens ambientais, estando sob a...

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