Amélia Beviláqua que era mulher de verdade: a memória construída da esposa de Clóvis Beviláqua

AutorWilton Carlos Lima da Silva
CargoDoutor em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP, Campus de Assis
Páginas138-161
1807-1384.2014v11n2p138
Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição 3.0 Não
Adaptada.
AMÉLIA BEVILÁQUA QUE ERA MULHER DE VERDADE: A MEMÓRIA
CONSTRUÍDA DA ESPOSA DE CLÓVIS BEVILÁQUA.
1
Wilton Carlos Lima da Silva2
Resumo:
A partir de quatro biografias sobre o jurista Clóvis Beviláqua, que apresentam três
estigmas do personagem - ser filho de padre, se envolver em uma grande polêmica
jurídico gramatical com Rui Barbosa na confecção do Código Civil de 1917 e ter uma
esposa de modos exóticos - busca-se discutir a memória construída de Amélia
Carolina de Freitas Beviláqua, que fica marcada como pioneira do movimento
feminista no Brasil e também como escritora arrivista que ambicionou entrar para a
Academia Brasileira de Letras; dona de casa relapsa; mulher pouco vaidosa e
desalinhada no vestir; esposa leviana ou adúltera, entre outras adjetivações
negativas.
Palavras-chaves: Clóvis Beviláqua. Amélia Carolina de Freitas Beviláqua. Biografia.
Memória.
1 INTRODUÇÃO
"Biografia das mulheres: até os trinta anos, cronologia; depois, mitologia."
(Hippolyte Jean Giraudoux
O jurista Clóvis Beviláqua (1859-1944) ocupou posição privilegiada entre os
“brasileiros notáveis” do contexto de transição do século XIX para as primeiras
décadas do século XX no Brasil, como membro destacado de uma elite política e
intelectual, tendo sido professor na Faculdade de Direito de Recife, autor do Código
Civil de 1917, consultor do Ministério das Relações Exteriores e jurista de prestígio
internacional, além de crítico literário e autor de livros de direito, filosofia e história.
Suas biografias enfatizam a amplitude de seus conhecimentos jurídicos, os
méritos da codificação civil da qual foi autor e o modo de vida humilde e generoso
que lhe valeu a alcunha de “santo laico”.
1 O presente trabalho faz parte de pesquisa que contou com apoio financeiro do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
2 Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP, Campus
de Assis. Professor Livre Docente do Departamento de Hist ória na UNESP, Campus de Assis. Assis,
SP, Brasil. E-mail: wilton@assis.unesp.br
139
R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.11, n.2, p.138-161, Jul-Dez. 2014
Por outro lado, três estigmas surgem nessas mesmas biografias: o fato de ser
filho de padre, a polêmica jurídico-gramatical com Rui Barbosa durante a confecção
do Código Civil de 1917 e a sua relação com a esposa, Amélia de Freitas Beviláqua.
A condição de filho de um padre, portanto concebido fora da instituição do
matrimônio, que não era rara no Brasil do século XIX, o coloca na mesma situação
de outros ilustres: José de Alencar (cujo pai o senador José Martiniano de Alencar
viveu maritalmente com uma prima, Ana Josefina, com quem teve oito filhos), José
do Patrocínio (filho de uma jovem quitandeira chamada Justina e do pároco da
capela imperial, João Carlos Monteiro que não lhe reconheceu a paternidade, mas
encaminhou-o), Diogo Antônio Feijó (batizado como “filho de pais incógnitos”, mas
que, segundo alguns pesquisadores, seria filho do vigário Manuel da Cruz Lima),
Teodoro Fernandes Sampaio (filho de uma escrava com o sacerdote Manuel
Fernandes Sampaio, que lhe comprou a alforria e cuidou para que o menino tivesse
uma boa educação), entre outros.
3
Sobre a polêmica no processo de codificação civil, quando Rui Barbosa, como
paladino do purismo gramatical e do resguardo da linguagem jurídica n a redação da
obra, despejou pesadas críticas ao projeto de Clóvis Beviláqua, deu início a uma
enorme celeuma. Juristas, intelectuais, políticos e instituições (o Supremo Tribunal
Federal, as diversas faculdades de Direito e o Instituto da Ordem dos Advogados,
entre outras) se manifestaram sobre a correta linguagem para a redação da
codificação, mas esta é avaliada atualmente apenas como resultado de uma disputa
política entre grupos da república oligárquica e fruto da tensão entre concepções
distintas de codificação jurídica e estilo retórico-literário no interior do discurso
jurídico, que não diminui nem os resultados da obra nem os envolvidos.
Finalmente, a relação do jurista com sua esposa, Amélia Carolina de Freitas
Beviláqua, que adotava modos excêntricos frente à sociedade da época, rendeu à
mulher uma memória construída a partir de diferentes imagens: escritora arrivista
que ambicionou entrar para a Academia Brasileira de Letras; dona de casa relapsa,
que permitia que animais domésticos habitassem no interior da residência; mulher
3 De certa forma, a trajetória de Clóvis Beviláqua parece refletir algumas das tensões desse contexto
pessoal, pois criado em uma situação de relativa tolerância e usufruindo das vantagens dessa
situação torna-se republicano e positivista refratário à Igreja enquanto instituição, como pai foi levado
pelos preconceitos de sua época a assumir como suas as filhas de sua filha, e enquanto pensador e
jurista se mostrou sensível às questões sociais (entre as quais a questão dos filhos ilegítimos).

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