Meios alternativos de resolução de conflitos: justiça coexistencial ou eficiência administrativa?

AutorDelton R. S. Meirelles
CargoProfessor assistente do departamento de processualística da Universidade Federal Fluminense (SPP/UFF). Doutorando em Direito (UERJ).
Páginas70-85

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I Meios alternativos de resolução de conflitos: considerações preliminares

É corrente a idéia da crise do Judiciário a partir da segunda metade do século XX, determinada, entre outros motivos, pela crescente judicialização da política e das relações sociais. Tal questão, especialmente sensível na realidade dos países periféricos e a busca pela constitucionalização e efetivação de direitos fundamentais, alia-se ao problema da constante complexidade da interpretação jurídica de novos conflitos e conseqüentes questionamentos à legitimidade judicial estatal para dirimi-los.

Mas esta crise da legitimidade não se restringe às deficiências interpretativas nesta reconfiguração dos conflitos sociais. Merece também destaque a luta de diversos movimentos sociais para a derrubada de barreiras à tutela jurisdicional plena, pressionando os Estados a pensarem em políticas públicas inclusivas, conhecidas como movimentos de Acesso à Justiça, analisadas por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, no revolucionário projeto de Florença.

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Assim, há vários obstáculos que não se esgotam nos limites econômicos2, como questões técnicas referentes à proteção de interesses coletivos, questões sociais3 e culturais4.

Uma das soluções apresentadas é o estímulo aos chamados meios alternativos de resolução de conflitos (doravante chamados de MARC's5 em vez do seu equivalente inglês ADR – Alternative Dispute Resolution), cujo conceito não é muito preciso na literatura sóciojurídica6. Mauro Cappelletti, p. ex., em relatório apresentado em simpósio sobre a Justiça Civil e suas alternativas (1992), oferece um conceito bem amplo, incluindo "expedientes – judiciais ou não – que tem emergido como alternativas aos tipos ordinários, ou tradicionais, de procedimento"7, como as class actions e o acesso à informação. Assim, os meios alternativos constituiriam uma forma de tutela jurisdicional diferenciada, em oposição aos procedimentos clássicos do processo tradicional.

Em outros casos, os MARC's constituiriam o estímulo dos juízes e/ou auxiliares do juízo à solução negociada pelas partes. Em vez de um procedimento voltado apenas para a imposição de uma sentença fundada num contraditório técnico, surgiriam oportunidades (predeterminadas em audiências ou não) para tentativas de acordo, evitando-se o prolongamento do processo com a produção de provas e interposição de recursos.

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Finalmente, os MARC's podem ser analisados sob um ângulo menos técnicoprocessual e mais político-social: uma paulatina redução do intervencionismo estatal e a ascensão de soluções privadas para os conflitos atuais. Neste caso, o adjetivo "alternativo" se referiria à jurisdição estatal, e não ao procedimento formal e tradicional, restando ao Judiciário verificar a existência da tentativa prévia de negociação ou executar o termo de acordo/arbitragem8.

Diante deste quadro plurissignificativo, surge um debate sobre os fundamentos de tais métodos alternativos, o qual transcende a teoria do processo e chega ao debate sócio-político: qual é o seu papel? Garantir uma maior legitimidade da jurisdição estatal ou satisfazer aos objetivos de redução do Estado?

Certamente que este quadro não pode ser analisado maniqueisticamente, sob pena de se simplificar a discussão entre um modelo necessariamente bom e outro essencialmente perverso. Mas isto não significa admitir-se a fábula da neutralidade axiológica do trabalho científico9 ou o autismo gerado pelo formalismo dogmático: problematizar a utilização dos MARC é reconhecer a necessidade de uma análise epistemológica e interdisciplinar dos institutos jurídico-processuais, como alerta Mauro Cappelletti, esta autonomia do direito processual significa uma certa abstração de alguns aspectos deste direito face ao objeto substancial do processo; isso porém não significa, ao mesmo tempo, uma necessária abstração destas facetas do direito processual relativamente a fundamentos extrajurídicos, extraprocessuais, culturais, políticos, econômicos, ideológicos10.

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I 1.Os marc’s como instrumento de pacificação de conflitos

Uma das vantagens da utilização dos meios alternativos, para seus defensores, é o retorno a um modelo de justiça baseado em idéias comunitárias11, em oposição à distante e formal jurisdição estatal. Como lembra Boaventura de Sousa Santos, "pode-se dizer que todas as sociedades minimamente complexas têm à disposição dos litigantes um conjunto mais ou menos numeroso de mecanismos de resolução dos litígios, entendendo como tal todas as instâncias suscetíveis de funcionar como terceira parte, ou seja, como instâncias decisórias exteriores às partes em litígio"12. Em outra oportunidade, o pesquisador português relata experiências sociológicas neste sentido, que tinham "por unidade de análise o litígio (e não a norma) e por orientação teórica o pluralismo jurídico, orientados para a análise de mecanismos de resolução jurídica informal de conflitos existentes nas sociedades contemporâneas e operando à margem do direito estatal e dos tribunais oficiais"13.

Neste sentido, cria-se uma atmosfera favorável aos MARC's, entendidos como instâncias legitimadas para a solução de conflitos sociais pelo próprio meio social em que se inserem, gerando uma maior conscientização política e participação popular14. Mauro Cappelletti, nos seus estudos sobre as políticas públicas de acesso à Justiça, defende um ideal de justiça coexistencial que "(...) deve ser perseguida quando esta possa revelar-se, também no plano qualitativo, não já um second best, mas também melhor do que a Justiça ordinária contenciosa"15. Assim, não haveria uma concorrência entre as duas "justiças"1617 e18, já quePage 74os MARC's não esvaziariam o Judiciário formal, e sim deveriam ser entendidos como órgãos de auxílio das políticas públicas de acesso à Justiça19, atendendo-se ao escopo de pacificação social dos litígios20.

Destaque-se que os MARC's não constituem um fenômeno recente. Ainda que não se considerem a autocomposição e a heterocomposição privadas pretéritas à constituição dos Estados modernos (já que não seriam alternativos, e sim principal método utilizado nas respectivas comunidades), é possível identificar esta cultura enraizada em países como os EUA (como relata Chase, "alternatives to litigation have been a feature of the American way of disputing throughout its history”)21.

Outro ponto interessante é que tais órgãos não ficam necessariamente vinculados à dominante jurisdição de direito, e sim podem decidir como base na equidade22, como expõe Calamandrei:

Anche nei sistemi processuali dell'Europa continentale si trovano numerosi esempi di "giurisdizioni di equità" o di collegi arbitrali composti di "amichevoli compositori", i quali cercano la giustizia del caso singolo, traendo ispirazione non dalla lege, che non li vincola, ma da quel senso di equità vivente nella loro coscienza, che detta loro la decisione più conveniente e più aderente alle circostanze del singolo caso23.

Por fim, Barbosa Moreira ressalta que o uso dos meios alternativos de solução extrajudicial de conflitos de interesses não se confunde com privatização do processo: de fatoPage 75"longe de ser o processo que assim se privatiza, ao contrário, os particulares é que vêem sua atividade revestida de caráter público"24 ou, em outras palavras, "o caso é antes de publicização da função exercida pelo particular que de qualquer tipo de privatização25.

I 2.Os marc’s como política de redução do estado

Sob uma perspectiva weberiana, os Estados modernos somente puderam construir sua dominação política a partir da apropriação do poder decisório, constituindo o monopólio jurisdicional. A partir de então, poder-se-ia verificar a formação do conflito entre maximização dos poderes estatais e autonomia privada. Assim, pode-se adotar uma dicotomia entre Estados reativos e ativos, conforme o grau de intervenção nos conflitos sociais26.

Nesta perspectiva, poderíamos identificar entre os argumentos pró-MARC's uma defesa da redução do papel do Estado na resolução de conflitos27. Este discurso ganhou força com a crise do modelo de wellfare state e ressurgimento do liberalismo econômico como ideologia hegemônica do capitalismo globalizado. Sendo assim, a sobrecarga de trabalho dos tribunais28 e a conseqüente morosidade da prestação jurisdicional justificariam os meios alternativos como medida garantidora de maior eficiência estatal, já que não seria economicamente viável maiores investimentos no aparelho judicial29, e conseqüente "necessidade real de remédios acessíveis e efetivos para pequenas causas, sem grandes (e altamente improváveis) subsídios estatais”30. Ainda que mencione expressamente as intenções do juiz Warren Burger, da Suprema Corte Americana, a crítica feita por Owen Fiss é adequada a esta exposição:

O juiz Burger não é movido pelo amor ou pelo desejo de encontrar novos caminhos para restaurar ou preservar as relações amistosas, mas sim por preocupações relativas à eficiência e à ordem política. Ele busca alternativas para a litigância com o propósito de diminuir o volume de casos no Judiciário ou, dePage 76forma mais plausível, de isolar o status quo da possibilidade de reforma pelo Judiciário31.

Frise-se que seria difícil a simples delegação da atividade jurisdicional a particulares, até porque mesmo os defensores do modelo de Estado gerencial entendem que o Judiciário integra o núcleo estratégico que não pode ser desvinculado32. Mas não seria exagero falar em privatização da resolução de controvérsias (ao contrário do que supõe Barbosa Moreira), sendo admitida esta natureza por Cappelletti & Garth:

Aspecto (...) que decerto merece ênfase é o da 'privatização', como um...

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