Alteridade, Criminologia e Política de Drogas Brasileira

AutorRaccius Potter
CargoAdvogado/RS. Mestrando em Ciências Criminais (PUC/RS). Especialista em Ciências Penais (PUC/RS)
Páginas11-15

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Diversidade e multiplicidade

O momento atual da história social, cunhado por alguns como pós-modernidade1, reflete um período de multiculturalismo, de perda de referenciais absolutos, onde as certezas tornaram-se difusas, controvertidas, ambíguas e são causa de eterno debate2.

Poucos momentos da história ocidental apresentam tal acúmulo de fatos significativos como a transição entre os séculos XIX e XX, transição essa que se inicia com a flexibilização de uma série de parâmetros culturais, a partir de meados do século XIX3.

Neste mundo de “mal estar”4, que caracteriza a condição trágica do sujeito no mundo moderno, somado à “complexidade”, que pressupõe fenômenos de aceleração histórica, associados aos descobrimentos científicos e tecnológicos das últimas décadas5, relançase na subjetividade o desencanto da atualidade e ensejase o universo de eleições possíveis no campo da interação humana.

Mais recentemente, o fenômeno da globalização ratifica essa condição, onde o sujeito se coloca como parte de um processo complexo e contraditório: há o reconhecimento da unidade do mundo como um todo, numa espécie de ‘compressão/compreensão’ do mundo; e, ao mesmo tempo, se percebe a intensificação de processos de diferenciação de identidades socioculturais que se constituem como novos e distintos atores políticos em uma escala global, respondendo, portanto, à crescente sensação de homogeneização cultural6.

Com isso, há um crescente cruzamento de fronteiras culturais que tem destruído as imagens unitárias, coerentes e ordenadas da modernidade, projetadas a partir dos centros ocidentais: “os sincretismos e hibridismos culturais se constituem cada vez mais em regra do que em exceção”7.

Esse processo de mundialização da cultura, que pode dar a impressão de vivermos em uma aldeia global, repõe a questão da tradição, uma vez que à medida que o mundo se torna mais complexo e se internacionaliza, a questão das diferenças se recoloca e há um intenso processo de construção de identidades: “o mundo está em parte assistindo justamente à afirmação das diferenças”8.

O diálogo entre os diferentes grupos culturais, respeitando a autonomia de cada um, deve ser visto como algo mais do que a negociação pragmática para a resolução pontual de questões imediatas – como tem sido a tradição no atendimento de temas mais emergenciais como racismo e perseguições religiosas9.

Diante desse cenário, surge a necessidade de redução das complexidades através da seleção. A seleção situa e qualifica os elementos, ainda que sejam possíveis outras formas de relação. Assim a complexidade pressupõe sempre um processo de redução que fixa um modelo de seleção das relações, excluindo temporariamente outras possibilidades de conexão de elementos como meras possibilidades potenciais, a fim de encontrar a estabilidade do sistema10.

O iluminismo é um marco da tentativa totalizadora de classificação e purificação da sociedade rumo ao progresso linear: “O mundo perfeito, utopia dos iluministas, seria ‘totalmente’ limpo e idêntico a si mesmo, transparente e livre de contaminações.”11

O século XX reflete uma situação sócio-histórico-cultural na qual fracassou definitivamente uma espécie de promessa de conciliação vigente na raiz do otimismo12. Dentro da complexidade contemporânea, tenta-se encontrar sentido onde, muito provavelmente, segundo todos os indicativos de uma totalidade de sentido, ele não se encontrará. Mas: “a questão é que a inquietação lateja”13.

Criminologia e o surgimento do “Outro”

Embora necessária a interação de conhecimentos, para uma melhor aproximação de entendimento desta complexidade apresentada, a ciência penal integrada14 privilegiou o saber dogmático e formal, relegando ao posto de ciência auxiliar qualquer saber diverso que ousasse investigar o fenômeno crime15. Além disso, o isolamento da dogmática das demais ciências gerou um saber autorreferencial, circunscrito a si mesmo16.

Gauer explicita a insuficiência do monólogo jurídico que resiste a admitir a incerteza da complexidade contemporânea. Para a autora, é preciso evidenciar esta carência à luz da complexidade (marca das sociedades contemporâneas), inserindo o Direito na epistemologia da incerteza e na fluidez da aceleração17.

Portanto esta razão deve ser superada por uma nova proposta de abordagem. Uma proposta que integre conhecimentos e não que os afaste. Pois, como dito por Souza: “é porque existe a tensão que existe a construção”18.

A condição para que se possam realizar investigações interdisciplinares é dotar os sujeitos interlocutores de condições similares de fala, ou seja, abdicar da ideia de estar um saber a serviço do outro19.

No entanto, a pretensão iluminista dentro da criminologia gerou uma resolução radical do problema da criminalidade através de seus parâmetros etiológicos. É realizada uma operação no interior do modelo bio-psico-social sanitarista e identifica-se na diversidade estético-racial o objeto de eliminação (homo criminalis). O horizonte investigatório é ampliado a ponto de forjar modelo de segurança pública capaz de identificar os inimigos públicos que devem ser controlados-eliminados-contidos20.

Por outro lado, as chamadas filosofias do diálogo revalorizam dimensões desvalorizadas ou efetivamente abandonadas no arco do desenvolvimento filosóficoPage 12 ocidental em sua esteira mais hegemônica. O essencial das filosofias do diálogo (dentre elas a ética da alteridade de Levinas) é a referência propriamente humana, existencial, da filosofia, sem a qual cada pensamento fica sem aplicação, por mais lógico e bem-construído que seja, se fecha em totalidade ou unidade meramente intelectual21.

Nesse sentido, os modelos de humanismo fracassaram pelo único motivo de não serem suficientemente humanos, pois, ao instaurarem no ser humano seu conceito, seu lugar, seu universal, acabaram por perpetrar a maior das violências: aquela que permite que as violências do dia a dia sejam transformadas em restos de um mundo em processo de autolubrificação22. Apesar do desespero de uma época sufocada em si mesma, surge o Outro, que existe, se expressa e tumultua definitivamente a pessoal trágica solidão do ser23.

No entanto, a esquerda e a direita, os progressistas e os reacionários do período moderno, ou seja, período de consolidação e reforço do monólogo jurídico, concordam que a estranheza é anormal e lamentável, e que a ordem do futuro, homogênea, pois superior, não teria espaço para os estranhos. Realiza-se uma política da igualdade que potencializa a violência e elimina o Outro, o diferente, o sujo, o impuro, o anormal, o doente, enfim, tudo o que causa estranheza, perigo, que lembra sujeira e desordem24.

No direito penal isto reflete diretamente quando do exercício de uma criminologia positivista, que, embora apresente sinais de agonia em meados do século XX25, é revigorada através da alteração de estratégias e discursos para continuar atuando na maximização da resposta punitiva, portanto excludente. Retoma mecanismos de criminalização, julgamento e punição da identidade do homo criminalis, direcionando-se à eliminação-controlecontenção de qualquer outro que pareça diverso26.

“Alteridade é crime”, parece ser a máxima orientadora e síntese ideológica da criminologia contemporânea. A criminologia do Outro, longe de reconhecer a diferença, elimina-a pela punição27. O Outro só é reconhecido como outro no âmbito acadêmico, pois fora dele permanece prevalecendo seu não reconhecimento através da exclusão da sua diferença28.

Não há o reconhecimento histórico da alteridade pelas ciências criminais, mas apenas sua instrumentalização para eliminá-las29. O efeito desta prática é o aumento da vulnerabilidade daqueles a quem incide a violência pública. Mas, além disso, a recepção pelo senso comum do discurso etiológico legitima a negação da alteridade, pois os criminosos são vistos sempre como estranhos, outros30.

Alteridade: breves considerações, infinitas possibilidades

Alteridade não é uma categoria lógica como outra qualquer, que se prestasse meramente a articulações intelectuais, mas uma incômoda presença a mim31.

Ela surge da necessidade de que se fundamente em outra instância de realidade a substância essencial da própria ideia de humano, reconstruindo-a em seus constitutivos mais profundos e fundamentais, acordes às prementes exigências da contemporaneidade32. É suficiente para sustentar o essencial da argumentação e resistir à tendência sincronizante-unificante do modelo logocêntrico de racionalidade33.

O Outro, por sua vez, é fundamentalmente um estranho, um antirreflexo do Mesmo narcísico, a ruptura do jogo de espelhos autoiluminante ao qual se entrega o intelecto deixado só com suas representações34.

A linguagem do Outro, seu outro discurso, é primariamente expressão da incomparabilidade de um outro espaço e de um outro tempo, que evidenciam com seu aparecer a limitação do espaço e do tempo do Mesmo, esse Mesmo que sou eu com minhas razões35.

O Outro rompe, com seu aparecer, a estrutura de totalidade na qual meu intelecto costuma autoentenderse. A totalidade é a imanência acabada: todos no tudo, tudo no Uno, a multiplicidade na unidade original ou final. Totalidade é, assim, a realização da dinâmica do Mesmo, a síntese final das energias que integram o Outro a uma unidade sólida36.

Souza assevera que o desdobramento do ser através da história, a perseguição do ser pela história são o desabrochar ontológico original da Totalidade em seu processo de redução do Outro ao Mesmo37.

É essa redução do ser através da história que Gauer evidencia quando indica que a implantação de um modelo rígido de pureza é imposta, tal como o da igualdade moderna, ele se torna totalizante e conduz à exceção já que...

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