Algumas Considerações sobre o Poder Judiciário e a Efetividade de Direitos das Crianças e dos Adolescentes

AutorClaudia Costa
Páginas439-445

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1. Introdução

A data comemorativa de 25 (vinte e cinco) anos de promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.609/90) é motivo de celebrações, mas também de incertezas e decepções. Pese o fato de termos avançado na proteção legal dos sujeitos de direito que as crianças e os adolescentes se tornaram desde a década de 1990 do século passado, acreditamos que pesquisas podem ser feitas no sentido de demostrar o que é verificado nos atuais dados e estudos disponíveis: a judicialização dos direitos sociais, tais como educação, água, saúde, moradia, previdência social, energia, entre outros, que afetam diretamente a vida dos mais desprotegidos ou vulneráveis na sociedade. Isso ocorre principalmente no seio das famílias cujo núcleo de maior preocupação para o desenvolvimento integral dependente desses direitos pode parecer não estar diretamente relacionado, ou seja: crianças e adolescentes.

Hoje, muito do que poderia fazer parte das políticas públicas para a materialização e efetividade dos direitos fundamentais sociais vem se tornando uma avalanche de demandas judiciais individuais que, aparentemente, não guardam relação com as ações na área de Família ou da Infância e Juventude. Esquece-se, no entanto, que o art. 4º do ECA dispõe sobre a proteção integral e a prioridade absoluta no cumprimento de todos os direitos ali previstos (concomitantemente). São direitos também previstos no art. 6º da Constituição Federal, bem como outros, que inserem a Criança e o Adolescente em outro modelo de Estado previsto a partir de 1988. Este modelo, além de ensejar a elaboração do ECA, revela-se numa transformação constitucional importante, que tentaremos sucintamente descrever neste artigo, relacionando-a ao papel do Poder Judiciário na efetividade dos direitos das crianças e dos adolescentes.

2. Princípios, constituições contemporâneas e a Constituição de 1988

A Constituição Brasileira de 1988 é a primeira, em nossa historia, a trazer os fundamentos e objetivos do Estado Brasileiro no Título I. Mostra-se

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um conjunto de valores que evidenciam as normas fundantes da organização do poder do Estado — fundamentos — e aquelas que, sem deixar de apresentar-se como dever ser, serão correlacionadas a outros dispositivos e enunciados da Constituição e do ordenamento jurídico por meio de ações dos agentes públicos — dos três poderes: tanto no exercício de suas funções quanto na formulação de políticas públicas, na própria Administração Pública — e da sociedade, para o cumprimento do ideal de Justiça projetado ao futuro pelo Constituinte.

Este novo modelo, o de um Estado Constitucional Democrático e Social, inicialmente, seria aquele capaz de dotar as sociedades e nações de uma verdadeira constituição em seu sentido formal e material.

Embora alguns desses princípios possam ser novamente contextualizados à luz das transformações do Estado no início do século XXI, não resta dúvida de que formam a base para a interpretação e aplicação da Constituição e do ordenamento jurídico brasileiro.

Por isso, ressaltamos aqui alguns dos fundamentos e objetivos do Estado Brasileiro na Constituição Federal que, após o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, podem ser mais bem entendidos em sua aplicação pelo Judiciário quando relacionarmos à efetividade dos direitos neles (na Constituição Federal e no ECA) previstos.

3. O estado (social e) democrático de direito

A República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito. Segundo Silva (2008: 102-122)1, essa norma contém a proclamação de que a Constituição está fundamentada em um novo tipo de Estado, não no sentido formal, mas indicando objetivos concretos que tentam explicitar conteúdos que compõem esse tipo de Estado.

Falar em Estado Democrático de Direito implica na “verdadeira” soberania popular, na par-ticipação do povo nas instituições representativas e no processo político como um todo para a produção do Direito. Mas, além disso, as concepções mais recentes concebem o Estado Democrático de Direito como Estado de Justiça Material, ou seja, “fundante de uma sociedade democrática que instaure um processo de efetiva incorporação de todo o povo nos mecanismos do controle das decisões, e de sua real participação nos rendimentos de pro- dução”, como salienta Diaz (1975: 95-98)2. Trata-se de “democratizar” o direito, ou mais, que o Estado só o é se verdadeiramente democrático, inexistindo, pois, de outra forma, o Estado de Polícia, autolimitando o governo no cumprimento da legali-dade por meio não somente da representatividade e de um sistema de freios e contrapesos, mas também de uma efetiva participação popular na formação da vontade pública plural, que leve a promoção dos direitos sociais do constitucionalismo do século XX (e XXI).

O Estado Constitucional passou por uma grande transformação, e o individualismo liberal clássico foi substituído pela reivindicação dos Direitos Sociais e por sua intervenção cada vez maior. Ou seja, a ideia de que o Estado deve criar o “bem-estar” geral.

A Constituição de 1988 não promete uma caminhada para o socialismo, algo constantemente temido durante a transição3, mas deve levar ao cumprimento efetivo da prática dos direitos sociais nela inscritos e possibilitar, talvez, a concretização das exigências de um Estado de Justiça Social.

4. Fundamentos do estado democrático de direito: a dignidade da pessoa humana

Embora a dignidade tenha um conteúdo moral, parece que a preocupação do Constituinte foi de ordem material, ou seja, a de proporcionar às pessoas uma vida digna, principalmente no que tange ao fator econômico.

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De outra perspectiva, o termo “dignidade da pessoa” visa a condenar práticas como a tortura — em todas as suas modalidades —, o racismo e outras humilhações tão comuns no nosso dia a dia.

O acerto do Constituinte está em colocar a pessoa humana como fim último de nossa socie-dade, não como simples meio para alcançar certos objetivos, como objetivos econômicos.

Logo, a dignidade é um princípio, um conceito com uma carga valorativa enorme que implica desde o direito à vida, passando pelos direitos individuais, para incidir na ordem de direitos sociais, econômicos e culturais. Ordem Econômica (art. 170), Ordem Social — realização da justiça social (art. 193), educação, desenvolvimento de pessoa e preparo para o exercício da cidadania (art. 205), só para citar alguns exemplos.

Segundo Sarlet (2004: 59-60), a dignidade da pessoa humana é “a qualidade intrínseca em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comuni-dade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”4.

A dignidade da pessoa humana é o princípio que norteia a aplicação, interpretação e a proteção de todos os direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal. Ademais, é a partir dela que o Constituinte enuncia o objetivo de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, sexo, raça, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV), assegurando a verdadeira isonomia5.

O ponto de partida para a união entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais se dá a partir da formulação do Estado Social e Democrático de Direito, o qual se cons-titucionaliza sobretudo com a Alemanha de Bonn (1949), reconhecendo a todos, inclusive crianças e adolescentes, como sujeitos de direitos e detentores da dignidade que lhes garante a integridade não só física e psíquica, mas sua saúde, alimentação, educação (direitos econômico-sociais). Essa é a ênfase dada por nosso Constituinte que ao prever nos arts. 226 e 227, “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado [...] e 227, 3º: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer...”, ademais de prever a destinação de recursos da Seguridade Social — destinado, entre outros, a essa finalidade.

Assim, a Constituição Federal promove a dignidade da criança, tornando-a sujeito de direito, não permitindo distinções de idade, ou quaisquer outras, a não ser que venham na forma de políticas de ações afirmativas devido...

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