Alguma coisa está fora da ordem... Fora da nova ordem mundial: fordismo e toyotismo nos novos capitalismos

AutorSayonara Grillo Coutinho Leona da Silva
Ocupação do AutorOrganizadora
Páginas167-179

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Na sociedade comunista, porém, onde cada indivíduo pode aperfeiçoar-se no campo que lhe aprouver, não tendo por isso uma esfera de atividade exclusiva, é a sociedade que regula a produção geral e me possibilita fazer hoje uma coisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar à tarde, pastorear à noite, fazer crítica depois da refeição, e tudo isto a meu bel-prazer, sem por isso me tornar exclusivamente caçador, pescador ou crítico.

A ideologia alemã

(Karl marx)

No momento atual do capitalismo, chegamos ao ponto no qual o indivíduo deve caçar, pescar, pastorear e fazer crítica... tudo ao mesmo tempo!

Assistimos o surgimento de um novo trabalhador: flexível, pós-fordista, taylorista, neoliberal, pós-moderno... Não importam os termos utilizados para designá-lo, verifica-se, efetivamente, que a produção precisa de um novo operário adaptado aos tempos modernos ou à nova globalização. Este novo trabalhador que surgiu, inicialmente, na iniciativa privada, criado pelas novas formas de produção na indústria, especialmente na indústria automobilística, é, pouco a pouco, também solicitado na administração pública. Ao novo operário segue o novo servidor público. Entretanto, como chegamos a este ponto? Como e para que surgiu este novo trabalhador? Quais mudanças socioeconômicas levaram ao seu surgimento? O artigo busca, apresentar um panorama dessas mudanças com base nas ideias de vários autores que já se debruçaram sobre o assunto.

1. Os anos de ouro

Entre 1946 e 1973, a economia mundial crescia de forma substancial. A produção mundial de manufaturados quadruplicou entre o início da década de 1950 e o início da década de 1970. O comércio mundial de manufaturados aumentou dez vezes. Também disparou a produção agrícola, principalmente pelo aumento da produtividade das terras. A produção de grãos por hectare chegou quase a duplicar. A indústria de pesca triplicou sua captura. Entre 1950 e 1973, o ano da crise do petróleo, o consumo total de energia disparou, triplicando nos EUA. Após a II Guerra mundial, a era do automóvel atingiu a Europa e, pouco depois, o mundo socialista e as classes médias dos países da América Latina (hOBSBAWN, 1995). O fordismo se espalhou para as indústrias de todo o mundo. Bens e serviços antes restritos a minorias passavam a ser produzidos para um mercado de massas. Os EUA, nessa época, tornaram-se o modelo de sociedade capitalista a ser seguido por todo o mundo ocidental.

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Nessa “época de Ouro” (hOBSBAWN, 1995) do capita-lismo mundial houve grande desenvolvimento da tecnologia. As novas técnicas que passaram a ser empregadas no processo produtivo eram, esmagadoramente, de capital intensivo. Cada vez mais eram necessários maciços investimentos, e cada vez menos trabalhadores eram requeridos, a não ser como consumidores. Entretanto, durante a época de ouro, o crescimento econômico foi tão grande que pouco se fez sentir essa contínua e permanente dispensa da mão de obra. mesmo nos países industrializados, a quantidade de trabalhadores na indústria se manteve ou até se elevou. Na década de 1960, a Europa tinha um índice de desemprego de apenas 1,5% e o Japão de 1,3% (VAN DER WEE, 1987). A situação econômica dos trabalhadores na Europa melhorou muito comparativamente ao entreguerras. Além de suas rendas crescerem ano a ano, podiam contar com seus estados de bem-estar social nos momentos de necessidade.
houve, nesse período, uma reestruturação e reforma do capitalismo que possibilitou aos Estados planejar e administrar essa modernização econômica. A Grande Depressão da década de 1920, causada pelo fracasso do mercado livre, os problemas econômicos e sociais do entreguerras e as próprias razões econômicas advindas da Segunda Guerra mundial, fizeram com que os formuladores da política econômica percebessem que o mercado deveria ser controlado pelo esquema de planejamento público de administração econômica. Os políticos, autoridades e mesmo muitos homens de negócios do pós-guerra acreditavam que um retorno ao livre mercado estava fora de questão. Alguns objetivos como pleno emprego, contenção do comunismo, modernização de economias atrasadas ou arruinadas, tinham absoluta prioridade para justificar a presença mais forte do governo.

Na realidade, foi necessário o choque da depressão selvagem e o quase colapso do capitalismo da década de 1930 para que as sociedades capitalistas aceitassem uma mudança na atuação do Estado, tornando-o mais intervencionista. A democracia liberal da década de 1920 foi superada por algum intervencionismo estatal. Os trabalhadores foram disciplinados em sistemas de produção, novos e mais eficientes, enquanto que a capacidade excedente foi absorvida por despesas produtivas, infraestrutura e, na prática, gastos militares.

No pós-guerra, o fordismo, que se estabelecera nos EUA a partir da década de 1910, alcança, praticamente, todo o mundo. Para Gramsci, antes da sua ocorrência, todas as mudanças no modo de ser e viver tiveram lugar por meio da coerção brutal, ou seja, por intermédio do domínio de um grupo social sobre todas as forças produtivas da sociedade: a seleção ou “educação” do homem adequado aos novos tipos de civilização, isto é, às novas formas de produção e de trabalho que ocorreram com o emprego de mecanismos que levaram milhões à margem da sociedade ou, simplesmente, eliminando-os. historicamente, no aparecimento de novos tipos de civilização, ou mesmo durante o processo de seu desenvolvimento, ocorreram diversas crises. Assim, a história da civilização foi sempre (e se torna hoje de modo ainda mais acentuado e rigoroso) uma luta contínua contra o elemento “animalidade” do homem, um processo contínuo, frequentemente doloroso e sangrento, de sujeição dos instintos naturais do ser humano a novas normas e hábitos de ordem, de exatidão, de precisão cada vez mais complicados e rígidos, fazendo com que as normas de vida coletiva tornem-se complexas, que são uma consequência necessária do desenvolvimento do “industrialismo”. Esta transformação, sendo imposta de fora para dentro, traz resultados puramente mecânicos. mesmo que os resultados obtidos até o período no qual Gramsci (2007) escreveu seus famosos cadernos, com grande valor prático imediato, ainda não tinham logrado impor ao trabalhador uma “segunda natureza”. O fordismo conseguiu racionalizar a produção e o trabalho, combinando habilmente a força com a repressão ao sindicalismo operário, e o controle do trabalhador com a persuasão, representada pelos altos salários pagos pela indústria, diversos benefícios sociais e hábil propaganda ideológica e política (GRAmSCI, 2007).

Após a II Guerra, o fordismo chegou à maturidade como regime de acumulação plenamente acabado e distintivo. Este sistema formou um longo período de expansão do capitalismo que se manteve intacto até 1973. Até aquele ano, o núcleo essencial do regime fordista manteve-se firme, estendendo os benefícios da produção e do consumo de massas de modo significativo (hARVEy, 2008).

Segundo harvey, o que havia de especial em Ford (...) era a sua visão, seu reconhecimento explícito de que produção de massa significava consumo de massa, um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma nova política de controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia, em suma, um novo tipo de sociedade demo-crática, racionalizada, modernista e populista (2008).

No entanto, para o próprio henry Ford, uma vez que as máquinas podiam ser melhoradas, razão não vejo para que não se faça o mesmo com o corpo humano. Nenhuma lei o proíbe. O grande problema é encontrar homens mentalmente próprios para experimentá-lo, com base nos fatos que vão sendo reunidos. há uma certa soma de inércia mental que tem de ser removida sempre que se trata de promover uma coisa nova. Uns tantos homens são suscetíveis de rápida modificação educacional, mas leva tempo para a sociedade mover-se e consentir na adoção de um caminho novo (FORD, 1920).1A criação do novo operário pressupunha educação e controle. Para Taylor, que lançou as bases “científicas” do controle do tempo do trabalhador no final do século xIx, a natureza humana seria de tal sorte que muitos operários, abandonados a si mesmos, sem orientação superior, dispensam pouca aten-

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ção às instruções previamente dadas. Assim, seria necessário designar instrutores, chamados chefes funcionais, para observar se os trabalhadores entendem e aplicam as instruções, em suma, para educar e controlar o novo trabalhador. Cada operário teria sete chefes funcionais para supervisioná-lo: o inspetor; o chefe de turma; o chefe de velocidade, o encarregado de observar se a máquina estava sendo acionada na velocidade conveniente e se as ferramentas adequadas estavam sendo usadas, a fim de que a produção fosse realizada no menor tempo possível; o chefe de reparação; o contador; o chefe de rotina; e o chefe de disciplina. Tudo isso seria feito com base em uma “administração científica”, na qual não caberiam mais considerações pré-concebidas. Não haveria razão lógica para que alguém ficasse contra as mudanças, pois haveria profunda cooperação da administração com os trabalhadores, de modo que o trabalho seria feito de forma conjunta, de acordo com leis científicas desenvolvidas, em vez de deixar a solução de cada problema, individualmente, a critério do operário. Afinal, mesmo que seu trabalho na prática, como chefe em uma siderúrgica, Bethlehem Steel Works, no final do século xIx, fizesse o número de operários necessários despencar de 400 a 600 para somente 140 (TAyLOR, 1990), Taylor escreveu, em sua obra prima, publicada no ano de 1911:

A história da evolução dos negócios demonstra que todo aperfeiçoamento, quer pela invenção de nova máquina, quer pela introdução de novo método, resulta no aumento da capacidade produtiva do homem no trabalho e na baixa do preço...

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