O alcance da norma jurídica constitucional tributária que imuniza o livro

AutorLuiz Gustavo Santana de Carvalho
CargoMestrando em Direito Tributário na USP. Especialista em Direito Tributário pelo IBET
Páginas117-139

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1. Introdução

Problema recorrente da comunicação é a vaguidade ou a ambiguidade dos termos e/ou expressões da língua, ou seja, dos signos. E o direito positivo (e seus subsistemas), tomado como fato comunicacional e materializado num corpo de linguagem escrita,1 não escapa desse problema. Seus enunciados prescritivos, e os termos ali contidos, aceitam interpretações diversas, respeitados os respectivos limites lógico--sintáticos.

O direito positivo se manifesta nos enunciados prescritivos dos diplomas legais (constituição, leis, decretos, sentenças, etc.), editados pelos agentes que o ordenamento jurídico elege e segundo procedimentos por ele definidos. E a linguagem do legislador é imprecisa. Em regra, as leis2 são elaboradas sem a observância de qualquer rigor técnico-científico, especialmente no que diz respeito à sua redação, o que implica em não raras ambiguidades e/ou vaguidades terminológicas. É isto o que ensina Paulo de Barros Carvalho, in verbis:

"(...) As leis não são feitas por cientistas do Direito e sim por políticos, pessoas

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de formação cultural essencialmente diversificada, representantes que são dos múltiplos setores que compõem a sociedade. O produto de seu trabalho, por conseguinte, não trará a marca do rigor técnico e científico que muitos almejam encontrar.

(...)”.3

"(...) o legislador se exprime numa linguagem técnica, miscigenação de termos colhidos na experiência comum e de vocábulos científicos. Ao depositar nos textos do direito positivo as significações de seus atos de vontade, muito embora o faça com intenção de racionalidade, acaba por incorrer numa série de vícios, responsáveis por antinomias, pleonasmos, ambiguidades de toda ordem, falhas sintáticas, construções impróprias e até fórmulas vazias de sentido.

"(...) Dista de ser verdadeira a lição, tão cediça em nossos clássicos, de que a lei não contém erros, redundâncias, palavras inúteis. (...) É lícito afirmar-se que nenhum ato normativo está livre de tais defeitos, fruto que é do trabalho do homem, prisioneiro eterno de suas imanentes limitações."4

Desse modo, pode-se afirmar que grande parte dos problemas existentes no direito positivo reside no uso da língua. É por esta razão que se torna indispensável a atuação do intérprete (aplicador e cientista), a quem incumbe o papel de descrever as normas jurídicas, construindo o seu sentido e/ou significação, preenchendo lacunas, solucionando contradições e aquelas ambiguidades e/ou vaguidades termi-nológicas, mediante o cotejo entre a acepção de base e a acepção contextual dos signos, e desapegando-se da "intenção do legislador", como ensina o referido professor paulista, in verbis:

"Já recordara Alf Ross, que 'La mayor parte de las palabras son ambi-guas, y que todas las palabras son vagas, esto es, que su campo de referencia ES indefinido, pues consiste en un núcleo o zona central y un nebuloso circulo exterior de incertidumbre’. Dentro dessa plu-rivocidade haverá sempre uma acepção de base e outra (ou outras) que podemos chamar de contextual (ou contextuais), como observa Luis Alberto Warat".5

Confirmando tudo isto, adicionalmente, o ilustre professor complementa ao afirmar que "não existe correspondência necessária entre a intenção do legislador e a substância semântica que o intérprete obtém pela verificação das exigências sistêmicas" .6

Nesse cenário, busca-se construir um sentido razoável e possível para a norma jurídica que decorre do enunciado lançado na alínea "d" do inciso VI do art. 150 da Constituição de 1988, que não autoriza a exigência de impostos sobre os livros, in verbis:

"Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...); VI - instituir impostos sobre: (...); d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão. (...)" (grifo nosso).

Esta tarefa de construir o sentido possível da norma jurídica, com as ferramentas oferecidas pelas ciências da linguagem - especialmente a semiótica - e por meio de uma teoria hermenêutico-analítica, tem como objetivo oferecer um caminho razoável para a solução dos conflitos que envolvem a limitação ao poder de tributar os livros, bem como produção e aplicação das regras que deixem de observar tal limitação.

A partir da leitura desse dispositivo, portanto, buscar-se-á construir o sentido

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do signo livro ali contido, de modo que se possa identificar claramente os limites ao poder de tributar, já que a imunidade tributária representa um limite a isto.

Nesse processo hermenêutico, é possível perceber que, do ponto de vista semântico, o signo livro pode denotar o ob-jeto livro impresso em papel ou um gênero, do qual o livro impresso em papel é apenas de suas espécies, ao lado de outras, tais como o livro eletrônico (e-book) e o audiolivro (audiobook). Mas também pode denotar um sentido figurado ("aprendeu no livro da vida").

Numa primeira análise, ao interpretar o referido dispositivo, é possível construir 03 (três) significações distintas para aquela regra imunizante, a saber:

(i) partindo da premissa de que o signo livro serve para denotar apenas o obje-to livro impresso em papel, o legislador constituinte optou por imunizar somente esse objeto;

(ii) reconhecendo que o signo livro serve para denotar um gênero, o legislador constituinte optou por imunizar apenas o livro impresso em papel, e não as demais espécies;

(iii) ainda reconhecendo que o signo livro serve para denotar um gênero, o legislador constituinte optou por imunizar todas as espécies de livro e, quando impresso empapel, também o papel utilizado na sua impressão.

Mas nesse processo de interpretação é preciso ir além, passando também pelo plano lógico-sintático e o pragmático, para que se possa "escolher" a melhor solução dentre aquelas apresentadas no parágrafo anterior.

Então, ao fim e diante de todos os elementos apresentados até então, tornar--se-á possível a análise crítica da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal de Justiça sobre o tema, verificando e apontando seus possíveis vacilos e/ou acertos.

2. A norma jurídica
2. 1 Concepção normativa do direito e a validade das normas jurídicas

Como lembra Lourival Vilanova,7 conceituar o direito é tarefa difícil e ainda pendente de solução, porque depende da fixação de pressupostos epistemológicos não coincidentes entre juristas e filósofos, especialmente. Diz o autor, in verbis:

"(...) Ainda não se entendem, cientistas e filósofos do direito, sobre a definição do direito. As causas da diversidade de definições, são muitas. Entre outras, a complexidade do objeto jurídico, os pressupostos filosóficos que servem de base às definições, os pontos de vista mediante os quais se considera o direito - ora a forma, ora o conteúdo, ora o valor, a natureza sociológica etc. -, de sorte que a definição do jurista, a do filósofo, até mesmo a decorrente do fato da especialização num ramo do direito, ostentam ampla discrepância, não meramente verbal, mas de substância (...)".

Todavia, uma forma possível de compreender a realidade jurídica, é aceitar o direito positivo (objeto de estudo da Ciência do direito) como norma jurídica ou como um conjunto de normas jurídicas (concepção normativa ou normativista), tal qual o fez Kelsen,8 seguido por tantos outros.9 Diz o autor: "Na afirmação evidente de que o objeto da ciência jurídica é

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o Direito, está contida a afirmação - menos evidente - de que são as normas jurídicas o objeto da ciência jurídica, e a conduta humana só o é na medida em que é determinada nas normas jurídicas como pressuposto ou consequência, ou - por outras palavras - na medida em que constitui conteúdo das normas jurídicas (...)".

Firme nessa concepção, toma-se cada norma jurídica como uma unidade do sistema do direito positivo, que estabelece vínculos com as demais por meio de relações verticais e horizontais, de hierarquia e coordenação.

Do ponto de vista da hierarquia, partindo da Constituição, as normas superiores fundamentam o nascimento (produção e ingresso no sistema jurídico) das inferiores, que derivam daquelas. Dito de outro modo, as normas inferiores guardam fundamento de validade nas que lhes são superiores. Já do ponto de vista da coordenação, cada norma desempenha um papel específico, dentro da competência que lhe é ou foi outorgada, não havendo o que se falar em hierarquia entre elas, mas sim de competência para disciplinar determinada matéria. São estas as relações que permitem aferir a validade das normas jurídicas.

Logo, são válidas as normas jurídicas produzidas em estrita observância à tais relações (hierarquia e coordenação). E, uma vez atendidos os requisitos formais da competência e procedimento previamente estabelecido pelo direito positivo, a norma jurídica é válida, até que outra norma de mesmo nível hierárquico lhe retire do sistema, ou seja, lhe retire a validade.

A validade assume a condição de critério para compreender o direito. Ela tem status de relação, entre a norma e o sistema. Uma norma é válida, portanto, se pertence ao sistema, segundo seus critérios.

Paulo de Barros Carvalho10 relata que, para Kelsen, o critério reside na forma: órgão competente e procedimento próprio. Há também o critério da dedutibilidade. Mas, relata o autor paulista que, para Daniel Mendonça, esses critérios são insuficientes, sendo mais satisfatória a proposta de Bulygin...

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