A Agroindústria no Sistema de Biocombustíveis

AutorPedro Ramos
Páginas239-259

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1. Introdução

Este texto tem dois objetivos principais: mostrar que o mercado de álcool combustível (etanol de cana) no Brasil tem existência desde o início da década de 1930, tendo sido criado em decorrência dos excedentes estruturais de oferta de açúcar no nosso mercado interno. O segundo objetivo é evidenciar que a evolução deste elo ocorreu sob a ação estatal planejadora e que a sua possível ampliação para o âmbito externo recomenda ou impõe uma nova regulação estatal.

Nessa perspectiva, a análise é feita em três períodos: o que foi de 1930 a 1965, no qual o principal destino do açúcar produzido no país era o consumo interno, com a exportação tendo papel secundário e com a produção e consumo de álcool carburante sendo usados como meio de diminuição dos excedentes estruturais de açúcar. O segundo período (1965-1990) inicia-se com o fato de que a exportação de açúcar foi incorporada ao planejamento da expansão de nossa agroindústria canavieira, mas como o resultado disso foi uma grande elevação daqueles excedentes, sucedeu-se a ampliação do mercado interno do álcool combustível com a criação do Proálcool, terminando o período com a crise de abastecimento de álcool hidratado em 1989 e com a extinção do órgão estatal que fazia o planejamento em 1990.

O terceiro período (1991-2005) tem em conta o aprofundamento dos elos entre os dois mercados, já que a exportação de açúcar tornou-se maior mas continuou apresentando grandes oscilações de quantidade e de preço, o que está vinculado ao fato de que muitas medidas relacionadas ao mercado interno de álcool carburante passaram a ser pontuais e reativas, com a produção e consumo de álcool hidratado tendo recuado para depois ganhar novo impulso face tanto à nova fase ascendente do preço do petróleo como ao advento do carro flex fuel, ao que se juntou as também oscilantes vendas externas de álcool para ser usado como carburante em outros países.

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Finalmente, considerando este quadro mais complexo, são feitas observações finais que defendem a ideia de que é necessária uma (nova) regulação ou planejamento das atividades ou dos mercados dos bens produzidos pela agroindústria canavieira do Brasil.

2. O período do planejamento setorial (1930-1985/90): os elos entre as produções de açúcar e de álcool carburante para o mercado interno
2. 1 O período 1930-1961/5: Os excedentes estruturais de açúcar e a importância do mercado de álcool carburante

Com a crise de 1929 tornou-se mais explícito o problema que a agroindústria canavieira do Brasil vinha vivendo: tratava-se da disputa pelo mercado interno, já que o crescimento da produção canavieira/açucareira em São Paulo, intensificada em decorrência dos investimentos dos cafeicultores na formação de usinas e engenhos, apontava para uma redução significativa da importação que o estado fazia do açúcar produzido no Nordeste, particularmente em Pernambuco, o qual já havia perdido o mercado externo desde a segunda metade do Século XIX.

Em dezembro de 1931 foi criada a CDPA/Comissão de Defesa da Produção Açucareira, cujo principal objetivo era o de implantar medidas e tomar iniciativas destinadas à diminuir os excedentes de oferta de açúcar no mercado interno. Um pouco antes, em agosto, já havia sido criada a Comissão de Estudos sobre Álcool Motor, e os elos que passaram a existir entre os dois mercados foram devidamente explicitados no livro que fez a defesa das medidas tomadas e a tomar: "Essa defesa, que queremos tornar definitiva, é a do açúcar pelo álcool" (TRUDA, 1971, p. 57). Em 1933 a CDPA foi sucedida pela criação do Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), cujo primeiro presidente foi o gaúcho Leonardo Truda.1

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Como resultado da relativa estabilização dos preços do açúcar e do álcool no mercado interno, ocorreu uma intensificação do processo de concentração fundiária na agroindústria canavieira do Brasil, o que fez com que o IAA passasse a estipular um máximo (60%) de cana própria que poderia ser moída pelas usinas, configurando uma intervenção nas relações entre os agentes sociais daquela agroindústria, conforme o que ficou especificado no Estatuto da Lavoura Canavieira (ELC) de 1941 e em legislação posterior.2

As iniciativas do IAA chegaram ao procedimento de compra e transformação de açúcar em álcool, o que fica claro nos dados da quinta coluna do Quadro 01. O mais importante, contudo, é ressaltar a existência de excedentes estruturais de açúcar entre 1930 e 1961/5, constatáveis nos dados da última coluna. Isto ocorreu não obstante a elevação do consumo per capita.3

Quadro 01 Brasil - Evolução da Produção, da Exportação, dos Estoques e do Consumo de Açúcar Centrifugado - 1935-1965 (Médias Quinquenais, em Mil Toneladas Métricas)

[VER PDF ADJUNTO]

Fonte: IAA (Instituto do Açúcar e do Álcool, folha avulsa).

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Quadro 02 Brasil - Evolução da Produção de Álcool e % do Anidro, da Quantidade e do % entregue para Mistura à Gasolina (Médias quinquenais de 1930/1-34/5 a 1960/1-64/5, em metros cúbicos, por safras e anos civis).

[VER PDF ADJUNTO]

Fonte: IAA (Anuários Açucareiros, vários números e folhas avulsas). (*) Média do triênio 1938-40.

As exportações de açúcar apenas alcançaram alguma importância em relação à produção nacional depois de 1955, sendo que o principal aspecto responsável por isso foi a Revolução em Cuba, o que abriu a possibilidade de colocação de parte do açúcar brasileiro no mercado (preferencial) norte-americano.4A este fato associou-se uma conjuntura favorável no mercado mundial de açúcar ao longo da década de 1960 e início da de 1970. Isto fez com que analistas do mercado mundial de açúcar apresentassem a avaliação de que somente quando se iniciasse a década de 1980 haveria equilíbrio entre a oferta e a demanda mundiais do produto (ver sobre isso, RAMOS, 2006).

Os analistas do IAA acompanharam tal avaliação e assim o órgão alterou sua posição no tocante ao papel das vendas externas para o futuro de nossa agroindústria canavieira: em 1961 criou a divisão de exportação e em 1965 a incorporou no processo de planejamento, com o advento da Lei 4.870, na qual também foi prevista a criação do

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Fundo Especial de Exportação (ver SZMRECSÁNYI, 1979, págs. 256, 277 e 287). Isto foi feito tendo sido assegurado o abastecimento do mercado interno5.

Quanto à produção de álcool (anidro + hidratado) ocorreu que ela foi multiplicada por dez entre 1930/4 e 1960/4. Embora aqui seja destacado o mercado de álcool carburante, fica indicado que a oferta de álcool para seus demais usos (doméstico, farmacêutico, indústria química etc.) também não apresentou problemas. No Quadro 02 vê-se que a quantidade de álcool anidro entregue para mistura à gasolina elevou-se no período, com seu uso sendo maior na região Centro/Sul. Nota-se que durante a Segunda Grande Guerra tal uso foi elevado, com a mistura à gasolina tendo chegado a 42%, percentual que diminuiu significativamente, principalmente na primeira metade da década de 1960.6A trajetória do mercado de álcool carburante no pós-II Grande Guerra esteve associada ao advento do Decreto-lei n. 25.174-A (03/07/1948), em cujo art. 1º foi estipulado que "O Instituto do Açúcar e do Álcool promoverá as medidas necessárias ao fomento da produção alcooleira nacional, visando o desenvolvimento da indústria da fabricação do álcool anidro, para fins carburantes e a expansão do consumo do álcool-motor no País".7Cabe lembrar que até o advento do Proálcool, a maior parte do álcool produzido era o indireto, ou seja, o obtido a partir da destilação do "mel residual", um subproduto da fabricação do açúcar. Isto ocorria principalmente em São Paulo.

2. 2 O período 1966-1985/90: Do açúcar para exportação ao Proálcool, sua crise e o fim do planejamento

O período que se iniciou em meados da década de 1960 marcou uma nova fase de expansão da agroindústria canavieira do Brasil, estimulada pelas medidas relacionadas às esperadas possibilidades de exportação de açúcar, como apontado no final da parte anterior. De fato (ver Quadro 05), tais vendas situaram-se em outro patamar de 1972 a 1974,

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tendo caído em 1975 e 1976, subido em 1977 e caído em 1978, evidenciando a instabilidade do mercado livre mundial tanto em termos de quantidades como em termos de preços.8

Quadro 03 Brasil - Evoluções dos Mercados de Açúcar e de Álcool (para todos os fins) entre 1976/7 e 1985/6 (quantidades em mil t e em mil m3)

[VER PDF ADJUNTO]

Fonte: IAA.

Pode-se afirmar que, mesmo assim, não ocorreram problemas com o abastecimento de açúcar e de álcool, carburante ou não, entre 1976 e 1985, como indicam os dados do Quadro 03, período no qual o IAA ainda fazia o planejamento setorial. Percebe-se que os estoques finais tanto de açúcar como de álcool representavam significativas proporções do consumo aparente, chamando a atenção a elevação dessa proporção no caso do álcool quando se toma as últimas safras do quadro. Evidentemente, isto está relacionado ao problema da não elevação das exportações de açúcar no ritmo, nas quantidades e preços esperados, o que, por sua vez, guarda relação com a criação do Proálcool9. As exportações anuais de álcool naquele período absorveram pequenas parcelas das produções.

Antes de tratar da criação deste programa, convém mencionar que o IAA implementou, entre 1971 e 1973, um plano de racionalização/modernização da produção agroindustrial...

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