Acesso à Justiça e Direito de Defesa (Direitos Fundamentais Contrapostos)

AutorGelson Amaro de Souza
CargoAdvogado. Professor na Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Doutor em Direito (PUC/SP)
Páginas6-20

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Introdução

O acesso à justiça e o direito de defesa são dois direitos fundamentais contrapostos, que merecem análise percuciente dos operadores para evitar que um destes direitos venha aniquilar o outro. Exige-se, para tanto, um equilíbrio entre ambos.

O acesso à justiça sempre desa-iou os mais argutos estudiosos do direito, isto porque o direito processual sempre representou para a sociedade uma igura enigmática. Sua coniguração, na visão geral das pessoas, é que o processo se trata de poria, confronto, batalha, contenda, disputa, briga entre duas ou mais pessoas, como se fossem as disputas do passado em que as pessoas colocavam suas vidas em ricos e tinham a obrigação de litigar.

O processo é instituto voltado à paz social e não disputa, como se fosse caso de vida ou morte. Nas contendas violentas é natural e necessária a possibilidade de defesa, porque aquele que não puder exercer a sua defesa, por certo, corre risco na sua integridade. No processo, que é instituto de paz social, que visa harmonizar a vida das pessoas de forma que nenhuma delas corra risco em sua sobrevi-vência, nem sempre será necessá-ria a concessão da oportunidade de apresentação de defesa, diante da ausência de prejuízo ou mesmo com prejuízo em menor escala do que aquele que teria caso não integrasse a lide.

Quando o réu não corre risco de prejuízo, ou mesmo quando há este risco, mas em menor dimensão com relação àquele que teria se ele fosse incluído como parte e, por isso, sujeito aos ônus e encargos do processo, a falta de citação acabará sendo um benefício para o réu. O formalismo excessivo é que radicalizou a necessidade de citação para todo e qualquer processo, sem

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atentar que em alguns casos com a citação o réu acaba por experimentar maior prejuízo, porque aumenta seus encargos processuais.

Também não mais é possível aceitar a vetusta ideia de que a citação é pressuposto processual.

Neste estudo, procura-se desmistificar a anacrônica afirmação de que a citação é pressuposto processual.

O dia a dia forense ensina que ninguém será citado antes da existência do processo. Ao contrário, primeiro instaura-se o processo e, só depois, é que se expedirá mandado de citação. Quando o mandado de citação é expedido, o processo já existe. Ademais, nem sempre o mandado de citação é cumprido e, por isso, nem sempre o réu é citado.

Existem casos em que a citação não é necessária, e o processo existe, é válido e produz efeitos.

A citação somente é necessária para abrir oportunidade de defesa para o réu. Mas, mesmo a defesa nem sempre é necessária. Há casos em que a solução do processo não prejudica o réu e, por isso, não há necessidade de defesa. Mesmo em alguns casos em que pode advir algum prejuízo para o réu, a defesa pode ser inútil, por não ser capaz de afastar a pretensão do autor.

Ainda há as hipóteses em que a citação aumentar o prejuízo do réu, porque o inclui no processo e cria para ele encargos processuais que sem a citação não ocorreriam.

1. Princípio do acesso à justiça

O princípio do acesso à justiça é inerente à natureza humana e sua existência independe de constar ou não no ordenamento jurídico, visto que ninguém pode viver sem justiça1.

O acesso à justiça é um dos direitos fundamentais previstos na

Constituição da República. A sua relevância extrapola a mera especulação acadêmica, merecendo atenção a todo e qualquer instante e em qualquer situação vivenciada no dia a dia. Trata-se de direito essencial que não pode ser suprimido e que, quando em confronto com outro direito, deve sempre prevalecer, visto que o ser humano não pode ficar desprovido de justiça.

A justiça não pode ser definida por palavras nem ser conceituada com a utilização de terminologia ambígua. Trata-se de sentimento intersubjetivo que acompanha a pessoa por toda a sua existência, e a sensação de injustiça pode provocar comoção social. Há dificuldade em se encontrar um ponto fixo em que se possa apoiar o sentimento de justiça - a sociedade vive em constante busca por esse sentimento enigmático. Sempre que uma pessoa se acha injustiçada ou em risco de o ser, procura o Poder

Judiciário, órgão encarregado da prestação jurisdicional em nome do Estado democrático de direito.

A Constituição da República elevou o direito de acesso à justiça ao nível de direito fundamental (art. 5º, XXXV) de forma que tal direito não pode ser suprimido por nenhuma legislação infraconstitucional.

Todavia, ao lado deste direito, consagrado como fundamental, outro existe que é o direito de defesa, também tratado como direito fundamental.

Vez por outra, estes dois direitos se encontram em posições contrapostas, exigindo, do aplicador do direito, um exercício de hermenêutica para melhor aproveitamento do direito. Essa contraposição de dois direitos fundamentais pode exigir a predominância de um em face do outro, formando uma atuação sábia do julgador.

Se por ventura o caso aconselhar a supressão ou a relativização de um desses direitos, deve prevalecer o acesso à justiça, porque este não pode ser suprimido, relativizado nem protraído ou diferido.

2. Princípio do direito de defesa

O princípio do direito de defesa, tratado pela Constituição da República como direito fundamental, igualmente aos demais princípios e direitos fundamentais, não pode ser absoluto2, mas situações existem em que antes do direito de defesa deve ser observado o princípio do acesso à justiça.

O direito de defesa existe para proteger a pessoa e evitar eventuais prejuízos em qualquer situação.

Por isso, o direito de defesa foi elevado ao nível de direito fundamental e com garantia constitucional.

Este direito não está restrito às relações processuais, devendo existir em todas as relações sociais e em todas as atividades e momentos em que a pessoa estiver envolvida.

Note-se que a lei penal autoriza a legítima defesa em qualquer situação de perigo, desde que este perigo não tenha sido provocado pela própria pessoa. Se foi a própria pessoa quem provocou o perigo, ela não pode se valer da legítima defesa, circunstância esta que nem sequer é cogitada na relação processual, sendo que à parte é atribuído o direito de defesa mesmo nos casos em que ela mesma é a causadora da situação processual.

Mas, isto não deve ser levado a ferro e fogo. Casos existem em que o exercício do direito de defesa pode aumentar o risco de prejuízo para o interessado, piorando a sua situação.

Hodiernamente, é corrente o pensamento e o ensinamento de que as pessoas não devem reagir em caso de roubos (assaltos), porque terão os riscos aumentados.

Em outros termos, as vítimas não devem se utilizar de seu direito de defesa, porque a situação poderá ser piorada. Nesta mesma linha, em termos de processo, pode-se

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dizer que em muitos casos seria melhor para o réu não ser citado, porque ficaria fora da relação processual e, por isso, livre de muitos encargos processuais. Desta forma, a falta de citação lhe beneficiaria e a falta de defesa em nada o prejudicaria.

Trata-se de direito que existe para ser exercido em benefício da parte, mas, nos meandros processuais, poderá, quando exercido, trazer maior prejuízo para a parte3.

Tal como o direito de ação só será exercido se a parte o quiser, o direito de defesa também haverá de ser assim. Como não existe obrigatoriedade para a ação, também não deve haver para a defesa4. O réu, ao ser chamado para se defender (art. 213 do CPC), pela simples citação, passa a integrar a relação processual e fica sujeito aos encargos normais da sucumbência (art. 20 do CPC). Caso exerça o direito de defesa, estes encargos sucumbenciais poderão ser aumentados (art. 20, §§ 2º e 3º, do CPC). Dependendo da forma com que for utilizado este direito de defesa, poderão incidir os artigos 14 a 18 do CPC, aumentando em muito o prejuízo do requerido.

Diante dessas e outras circunstâncias, é que seria de bom alvitre rever alguns dogmas do passado e dispensar a citação para defesa nos casos em que se verificar que esta não trará benefícios para réu, autorizando ao juiz o julgamento imediato, apenas intimando as partes do que foi decidido, deixando a critério de qualquer delas a manifestação de interesse em recorrer, assumindo por si própria, o risco do aumento dos encargos sucumbenciais.

Mas, não impor como obrigatória a citação, que, uma vez ocorrendo, arrasta o réu para dentro do processo e amplia seus encargos processuais, mesmo sem a sua vontade.

Na esfera administrativa o Supremo Tribunal Federal já decidiu que a falta de defesa técnica não é caso de nulidade do procedimento5.

Com esse entendimento a mais alta corte do país começou a relativizar as exigências do devido processo legal previsto na Constituição Federal (art. 5º, LV) e permitir a escolha da parte em se defender ou não, deixando a entender que a defesa é um direito e não obrigação.

Não se pode duvidar de que, em muitos casos, o réu, mesmo não citado para se defender, mas condenado por julgamento imediato, ao tomar conhecimento da decisão, com ela se conformará e não aviará recurso, aproveitando-se do benefício do menor encargo6. Se o réu, mesmo sem ser citado pode ser aquinhoado com o benefício do menor encargo, para que sacrificálo com a citação que o integra à relação processual e aumenta os seus encargos processuais?

Nos casos de evidência em que o juiz pode decidir de imediato7, melhor seria se deixasse a cargo do réu a escolha entre comparecer ao processo para recorrer da decisão ou com ela se conformar, evitando maiores prejuízos. A defesa nestes casos será...

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