Acesso à justiça: corpo e alma da cidadania

AutorLuiz Otávio Linhares Renault - Maria Isabel Franco Rios
Ocupação do AutorProfessor dos cursos de graduação e de pós-graduação, mestrado e doutorado, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - Advogada, mestra em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Páginas25-49

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1. Introdução

Vivemos o século XXI, fruto das inúmeras transformações por que passou o planeta Terra, em seu percurso de 4,5 bilhões de anos, e no qual nós, seres humanos, surgimos de um imenso processo evolucionário que já conta com 13,7 bilhões de anos. Os seres humanos representam a parte consciente e inteligente do universo e têm como missão dar continuidade à vida, ao progresso material, espiritual e ético, assim como à civilização. O cosmos foi criado do caos, mas a vida se fez, se refez e se mantém. O universo sempre conseguiu transformar o caos; do destrutivo ao criativo. Sempre existiu para muitos, principalmente para os idealistas e sonhadores, o desejo de transformar o mundo, tornando-o justo para todos. Esta transformação teria por escopo tornar o mundo um ambiente de respeito, de igualdade, de justiça, e crescimento material e humanístico para todos, elevando-os à plenitude ética, moral, intelectual e cultural, presumindo que a vocação humana é a proximidade da perfeição.

Neste século XXI, é perceptível a insuficiência das disposições legislativas, assim como as lacunas das leis e o descompasso entre os anseios da sociedade e as decisões judiciais. Há um profundo fosso entre o discurso dos operadores do Direito e a efetivação dos direitos no mundo real; entre o Direito e a vida do Direito; entre a realidade e a era dos Direitos. O Brasil do século XXI, quinta maior economia mundial, não comporta mais o padrão de Justiça instituído para uma sociedade ruralista, de elite aristocrática, estável, patrimonialista e machista, que perdurou durante todo o século passado. Exemplo maior desta afirmação foi o Código Civil de 1916, inspirado no Código Napoleônico, elaborado no século XVIII e que entrou em vigor no início do século XIX. No século XX, presenciamos a consagração e a universalização dos direitos do homem, ocorrendo a sua consolidação na consciência jurídica universal. Nos tempos atuais, o Poder Judiciário precisa de novos paradigmas. A Justiça tem de adequar-se aos avanços de diversos ramos do saber - às redes digitais, à conectividade, à cooperação, à gestão inteligente e ética, ao processo eletrônico, aos softwares, à robótica, à nanotecnologia, às novas mídias. Surgiram inovações como o processo eletrônico, a certificação digital, o julgamento monocrático em segundo grau, a decisão temática para vencer as inúmeras lides idênticas, ou, pelo menos análogas, a tutela metaindividual, as tutelas de urgência e de evidência. Paralelamente,

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surgiram leis inovadoras, como por exemplo, a que instituiu os Juizados Especiais, caracterizados pela oralidade, pela simplicidade, busca da conciliação e da pacificação social, assim como a ADR - Alternativa Dispute Resolution. Repetindo José Renato Nalini:

Os processos são calhamaços de papel impresso em negro. Mesmo o processo virtual é visto nessa redução: letra preta em tela branca. A mesmice, a rotina, a angústia gerada pela reiteração de promessas descumpridas, mentiras e falsidades forjadas, podem levar ao desencanto. Por isso, será difícil enxergar ideias novas - coloridas - nesse universo preto no branco.1

Por outro lado, fomos aquinhoados por uma nova Constituição em 1988, denominada "Cidadã".2

Ela acrescentou setenta e sete incisos ao art. 5º, proclamadores dos cinco direitos básicos: vida, liber-dade, igualdade, segurança e propriedade. Todavia, esta enunciação não é exaustiva, podendo alçar o infinito, diante do texto do § 2º desse dispositivo que estabelece: "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por elas adotados, ou tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte." No § 1º do art. 5º, deu-se ênfase à aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, transformando-os em cláusulas pétreas, conferindo- -lhes imutabilidade atemporal, conforme art. 60, § 4º, da Constituição da República de 1988: "Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: os direitos e garantias individuais".

A Emenda Constitucional n. 45/2004, acres-centou mais um direito ao rol do art. 5º, determinando a razoável duração do processo e os meios garantidores da celeridade de sua tramitação. Previu que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, se aprovados em cada Casa do Congresso, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, ganhariam veias de emendas constitucionais.

Os direitos humanos, segundo Mário Bigotte Chorão:

formam uma categoria particularmente importante e qualificada de direitos subjetivos: inerentes ao homem enquanto homem (daí, direitos ‘humanos’, ‘originários’, ‘inatos’, ‘naturais’...), concernem a bens essenciais do titular, são dotados de valor proeminente no ordenamento jurídico (qua- lificam-se como ‘absolutos’, ‘sagrados’, ‘fundamentais’, ‘invioláveis’...) e justificam um sistema reforçado de garantias (de alcance interno e internacional, de nível constitucional e incidência penal).3

Mesmo com todas as garantias constitucionais, a pessoa humana sofre as consequências da ausência ou da ineficácia de políticas públicas, atreladas ao capitalismo selvagem. Grande número de pessoas não tem acesso a direitos sociais e civis básicos: legislação trabalhista, previdência social, educação, transporte público, saúde, moradia, saneamento, e outros mais.

Previu Mike Davis que:

as cidades do futuro, em vez de feitas de vidro e aço, como fora previsto por gerações anteriores de urbanistas, serão construídas em grande parte de tijolo aparente, palha, plástico reciclado, blocos de cimento e restos de madeira. Em vez das cidades de luz arrojando-se aos céus, boa parte do mundo urbano do século XXI instala-se na miséria, cercada de poluição, excrementos e deterioração.4

Estamos vivendo um momento histórico, no qual se demanda dos integrantes do Poder Judiciário resultado concreto na multiplicação de sua capaci-dade de resolução de conflitos, de pacificação da sociedade, e de ampliação das alternativas para a solução harmônica das controvérsias e das diferenças.

A teoria do processo está vinculada a valores históricos, por ser cultural. Não é algo dado; é ciência construída. A grande marca da teoria do processo é a noção de Estado, em um determinado momento da História.

Sustentava Piero Calamandrei, segundo proclama Nicola Picardi5, "que a formação legislativa

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do direito é a "expressão normal", enquanto a sua formação judiciária representa ‘a extrema ratio dos períodos críticos, nos quais o legislador não tem tempo de preparar com vagar as suas reformas".6

Aplicando tal critério, podemos dizer que nos encontramos agora em um ‘período crítico’ e em uma situação de emergência. De resto, a própria expressão ‘substituição judiciária’ indicaria a assunção de uma função por parte do juiz a título precário e contingente.

Ocorre que o Estado é o maior produtor de demandas, conforme disse Canotilho.7 Segundo este autor, o Estado de Direito transformou-se em Direito do Estado, o Poder Judiciário tornou-se um serviço a serviço do Estado. Eis a indagação de José Renato Nalini: "Não é o Estado o maior produtor de demandas, sufocando os tribunais com sua resistência em reconhecer seus desmandos?"8

Até recentemente, vinha se entendendo por acesso à Justiça como o acesso aos tribunais. Afinal, a Constituição enuncia, em seu preâmbulo, a intenção de instituir um Estado Democrático de Direito. Todas as Constituições brasileiras enunciavam o princípio da garantia da via judiciária. Esta garantia universal significa que a via judiciária estaria aberta para a defesa de todo e qualquer direito e disponível a todos, contra particulares, contra os poderes públicos, independentemente da condição econômica do autor.

2. O acesso à justiça

Iusticia, na mitologia romana, é Diké - na mitologia grega, é filha de Zeus com Têmis, deusa dos julgamentos e da justiça, vingadora das violações das leis.

Lecionam José Rogério Cruz e Tucci e Luiz Carlos Azevedo que um fato marcante para o Direito no início dos anos 70 foi a passagem do sistema do processo liberal, até então predominante nas legislações da Europa ocidental e naquelas derivadas, para um modelo de processo social, que consagrou de modo rigoroso o dever de motivação das decisões judiciais bem como o papel do juiz ativo, com a intenção de estabelecer entre as partes uma isonomia real e efetiva e não meramente formal. Foi nesta década, dando sustentáculo ideológico aos novos rumos do processo civil, que vieram a lume, dentre outras, as importantes obras de Nicolò Trocker, - Processo civile e costituzione, Milano, Giuffrè, 1974; - e de Mauro Cappelletti e Bryant Garth, em conclusão ao denominado "Projeto Florença", Access to justice - 6 tomos, Milano-Alphenaanddenrijn, Giuffré- -Sijthoff, 1978.9

A obra de Cappelletti e Garth10, formada por seis tomos, teve a sua introdução traduzida por Ellen Gracie Northfleet, convertida no livro Acesso à Justiça, do qual se extrai esta citação:

A expressão "acesso à Justiça" é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico - o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos. Nosso enfoque aqui, será primordialmente sobre o primeiro aspecto, mas não podemos perder de vista o segundo. Sem dúvida, uma premissa básica será de que a justiça social, tal como desejada por nossas sociedades modernas, pressupõe ...

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