O Direito Fundamental de Acessibilidade das Pessoas com Deficiência no Âmbito dos Transportes , o Passe Livre e a Questão Econômico-tarifária

AutorFernando Basto Ferraz - Elizabeth Alice Barbosa Silva de Araujo - William Paiva Marques Júnior
Páginas115-125

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1. introdução

Passados vinte e cinco anos da promulgação da Constituição Federal e mais de quatro desde o ingresso da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo no ordenamento jurídico brasileiro, muito ainda falta para consolidar o status jurídico do portador de deficiência para que este se coloque em condições de igualdade com os demais indivíduos. São todos eles destinatários de direitos fundamentais que, muitas vezes, não podem ser exercidos em igualdade de condições, precisando, por isso, ver relevadas todas as distinções, de modo a tornar mais equânime o exercício desses direitos.

É nesse sentido que se mostra relevante a discussão sobre o direito fundamental de acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência no âmbito dos transportes, por entender-se como instrumental e acessório ao exercício de outros direitos fundamentais.

Para isso, é necessário discutir-se os fundamentos constitucionais do direito fundamental de acessibilidade, dedicando-se especial atenção aos dispositivos constitucionais correlatos e à Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que trouxe claro reforço normativo à Constituição, tornando indiscutível o dever de garantir a acessibilidade por todas as esferas federativas.

Em complemento ao regramento constitucional, passa-se a analisar a instituição do "passe livre" para a pessoa portadora de deficiência reconhecidamente pobre e a legislação existente sobre o assunto nos níveis federal e estadual, especificamente no Estado do Ceará.

Acerca das decisões judiciais sobre o assunto, não se pôde furtar à análise de recente decisão em que foi concedido o direito à reserva de dois assentos nas aeronaves para pessoas portadoras de deficiência reconhecidamente pobres, à semelhança do que já era assente em relação aos outros modais de transporte interestadual coletivo.

Por ser medida que impacta diretamente no equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão de serviço público de transporte, mostra-se necessário direcionar o olhar para essa questão, inclusive com relação aos argumentos levados à discussão judicial pelas empresas concessionárias e sua repercussão nas decisões proferidas.

Cada um desses pontos leva ao reconhecimento de diversos níveis de acessibilidade com que se

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deparam os portadores de deficiência, vinculados a cada tipo de obstáculo, que necessariamente precisa ser vencido.

2. fundamento constitucional

No bojo da ordem constitucional pátria, a Constituição fala em oportunidades esparsas, sem trazer uma seção específica a respeito dos deficientes. A primeira oportunidade é feita ao tratar dos direitos dos trabalhadores, no que toca à proibição de qualquer discriminação relativa a salário ou aos critérios de admissão (art. 7º, inc. XXXI). Em seguida, ao tratar das competências dos entes federativos, coloca como compromisso de todos os entes da Federação brasileira "cuidar [...] da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência" (art. 23, inc. II) e, no aspecto legiferante, a competência legislativa concorrente sobre "proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência" (art. 24, inc. XIV). Por conta dessa atribuição legislativa concorrente, mas especialmente porque a Constituição conferiu competência material para todos os entes, os Municípios também têm competência para legislar sobre o assunto, no âmbito do interesse local.

Mais especificamente aos transportes, veja-se que a Constituição adotou três parâmetros norma-tivos distintos. Para a União, definindo exaustivamente suas competências privativas, estabelece a competência para "explorar" os transportes nas modalidades aéreo, ferroviário, aquaviário e rodoviários interestadual e internacional, e a respectiva administração das infraestruturas (art. 21, inc. XII, als. c a f), bem como a competência para legislar privativamente sobre "diretrizes da política nacional de transporte", sobre o regime das infraestruturas e sobre os transportes (art. 22, incs. Ix a XI). Já para os Municípios, sua competência envolve "organizar e prestar" o serviço público de transporte coletivo (art. 30, inc. V), subentendida nessa competência de organização a definição das regras de prestação adequada do serviço. Diversamente do que ocorre com outras competências municipais, esse serviço não conta com a cooperação dos demais entes federados. Por fim, para os Estados, a Constituição não estabelece competência explícita, recaindo na reserva de competências não vedadas (art. 25, § 1º); por exclusão, aos Estados compete a organização e prestação do serviço de transporte rodoviário intermunicipal.

A Constituição volta a prestigiar os deficientes no âmbito do regime dos servidores públicos, primeiramente pela reserva de percentual de cargos na Administração Pública (art. 37, inc. VIII) e depois pela autorização de adoção de requisitos e critérios diferenciados de aposentadoria (art. 40, § 4º, inc. I). A mesma regra de diferenciação é aplicada no âmbito da previdência social (art. 201, § 1º). Também no âmbito da assistência social, a habilitação e a integração dos deficientes à vida comunitária e a garantia de um salário mínimo de benefício ao deficiente pobre são arroladas entre seus objetivos (art. 203, incs. IV e V). A Constituição ainda lembra dos deficientes na educação, exigindo atendimento educacional especializado na rede regular (art. 208, inc. III).

Por fim, no capítulo relativo à família, à criança e ao adolescente, ao jovem e ao idoso, a Constituição prevê a criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os deficientes desde os primeiros anos e de integração social, em coerência com a competência legislativa concorrente e com a política de assistência social, bem como demanda a facilitação do acesso a bens e serviços coletivos, com a supressão de obstáculos de qualquer natureza, em especial os arquitetônicos (art. 227, § 1º, inc. II). Em acréscimo, estabelece a normatização, mediante lei em sentido estrito, da construção de logradouros e edifícios de uso público e fabricação de veículos de transporte coletivo adequados aos portadores de deficiência (art. 227, § 2º) e da adaptação dos logradouros, edifícios e veículos atualmente existentes (art. 244). Conquanto topicamente localizado no tema da criança, do adolescente e do jovem, tais garantias ao deficiente ultrapassam os critérios etários, beneficiando todo o grupo de proteção, até mesmo se considerarmos que as crianças, adolescentes e jovens de hoje serão os adultos e idosos de amanhã.

De todo o exposto, verifica-se que a Constituição, embora não tenha colocado os deficientes numa localização especial do seu texto, foi recorrente na lembrança do tratamento específico a esse grupo vulnerável, especialmente ao atribuir um compromisso dos entes federativos na promoção da habilitação e integração social. O fundamento desse discrímen não pode ser outro que não o direito à igualdade, alçado ao status de direito fundamental na parte final do art. 5º, caput, da Constituição.

No entanto, é imprescindível verificar que, embora não conste, no rol dos direitos fundamentais listados na Constituição de 1988, um direito ou conjunto de direitos fundamentais voltados para os deficientes, o art. 5º, § 2º, na redação original da Constituição, não só autorizava a abertura norma-tiva dos direitos fundamentais para outros locais do

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próprio texto constitucional, decorrentes do regime e dos princípios adotados, como se poderia extrair especialmente do art. 227, mas também remetia aos tratados internacionais assinados pela República. Mais recentemente, a Emenda Constitucional n. 45/04 ampliou a força normativa desses direitos fundamentais decorrentes, estabelecendo no § 3º a regra de que tratados internacionais de direitos humanos, quando respeitarem os procedimentos e o quórum para aprovação de emenda constitucional, passam a ter status equivalente. Integrando o assim chamado bloco de constitucionalidade, verifica-se que até hoje veio a integrar formalmente a Constituição de 1988 com força de emenda constitucional, com fundamento no art. 5º, § 3º, somente um único documento internacional, a saber, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, aprovado pelo Congresso Nacional através do Decreto Legislativo n. 186, de 9 de julho de 2008, e recepcionado no ordenamento jurídico pelo Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009. Nos dezoito artigos da Convenção, apensada ao Decreto, positiva-se um capítulo específico para a regulamentação dos direitos fundamentais dos deficientes. Mais especificamente, ao tratar do direito à acessibilidade, no art. 9, dispõe a Convenção nos seguintes termos:

Art. 9º

Acessibilidade

  1. A fim de possibilitar às pessoas com deficiência viver de forma independente e participar plenamente de todos os aspectos da vida, os estados Partes tomarão as medidas apropriadas para assegurar às pessoas com deficiência o acesso, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, ao meio físico, ao transporte, à informação e comunicação, inclusive aos sistemas e tecnologias da informação e comunicação, bem como a outros serviços e instalações abertos ao público ou de uso público, tanto na zona urbana como na rural. essas medidas, que incluirão a identificação e a eliminação de obstáculos e barreiras à acessibilidade, serão aplicadas, entre outros, a:

  1. edifícios, rodovias, meios de transporte e outras instalações internas e externas, inclusive escolas, residências, instalações médicas e local de trabalho; [grifos nossos]

Não significa dizer que antes da promulgação do Decreto n. 6.949/09 não estava...

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