Abolicionismo e direito animal ? desconstruindo paradigmas: uma abordagem sob o prisma dos movimentos em prol dos Direitos animais e da ética do cuidado

AutorCarolina Grant
Páginas263-300

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1. Introdução: como se forma um paradigma?1

"O segredo da Verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias" (João Ubaldo Ribeiro).

A célebre frase de João Ubaldo Ribeiro, em epígrafe à obra "Viva o Povo Brasileiro", tem sido recorrentemente utilizada como a metáfora mais expressiva de uma das maiores discussões teóricas no âmbito da compreensão crítico-reflexiva da História

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e da Sociedade: como se constrói a História, a "verdade", um paradigma que regerá uma época (ou muitas épocas).

Por trás desta assertiva, encontram-se relações de poder e alienação; a partir dela, desvela-se o processo de naturalização/ essencialização dos fenômenos histórico-culturais, dos conceitos, das concepções de mundo.

Ao longo da história da humanidade, em cada época, aqueles que assumiam, por fatores conjunturais, o poder - seja ele o de gênero (o homem, no mundo primitivo, que institucionalizou a primeira forma de divisão do trabalho, entre homens e mulheres / machos e fêmeas), o religioso (Igreja Católica, na Idade Média, p.ex.), o político (o Estado - aqueles que o dominavam), o econômico (capitalismo/liberalismo), ou, inclusive, o "científico/racional" (racionalismo), dentre outras formas mais sutis (ou não) de poder - instituíam e reproduziam a sua versão dos fatos, tornando-a verdade absoluta e inconteste.

Com o tempo, esta "verdade" passava a ser repetida pelos demais, de forma acrítica, e tornava-se algo "natural", "normal", repudiando-se, excluindo-se ou ridicularizando-se, deslegitimando-se, aqueles que com ela não concordavam ou que nela não se enquadravam. Foi assim com as mulheres (sexismo), com os pagãos/ mouros/árabes (caça às bruxas, cruzadas, guerras santas), com os negros (através dos muitos discursos que pretendiam legitimar a escravidão, através da "constatação" da "inferioridade" de uma raça perante outra), com os povos africanos, latinos, orientais (imperialismo(s)) e é assim, até hoje, com os animais (especismo), uma vez que, desde tempos imemoriais, tem sido o "homem/branco/ocidental/católico/heterossexual/animal racional" que tem contado a sua versão da história, servindo, portanto, como padrão, modelo, fator primordial de consideração.

O processo de formação de um paradigma perpassa, ainda, pela compressão das ideologias presentes ou em confronto em cada momento histórico, a fim de que se possa perceber e analisar qual delas "assumiu o controle", qual a ideologia dos "ven-

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cedores" - daqueles que acabam contando a História e procurando assegurar o establishment e o status quo que lhes favorece.

O conceito de ideologia foi primeiramente desenvolvido por Feuerbach, com o intuito de criticar a alienação religiosa, passando a ser utilizado relativamente a outras formas de alienação social somente com o advento da obra do economista e filósofo alemão Karl Marx, de acordo com o qual a consciência humana seria sempre social, histórica e contextualizada.

Com efeito, ideologia corresponde a um conjunto de idéias e representações capazes de orientar o agir de um homem ou de um determinado grupo social, localizados no tempo e no espaço. A crítica que se faz é que se estaria operando por inversão, isto é, colocando-se os "efeitos sociais no lugar das causas" e, sob o ilusório propósito de explicar a realidade, reafirmar-se-iam, no plano teórico, relações sociais já consolidadas; tal mecanismo levaria a crer que idéias, instituições, correlações de força, "verdades" foram criadas de forma natural, lógica ou simplesmente pelo uso da razão, ocultando-se o fato de que foram os próprios homens, em determinadas circunstâncias conjunturais, que as criaram e reproduziram/fizeram reproduzir-se (GORDILHO, 2008, p. 18).2O paradigma cartesiano (ou "paradigma dominante") foi a expressão mais bem acaba do racionalismo científico, inclusive quanto à sua pretensa eficiência em manter o saber que se propõe, de fato, dotado de cientificidade e, portanto, validade, longe das ideologias (ledo engano). Nesse contexto também se encontra incluída a "Ciência do Direito". Somente com a virada lingüístico-filosófica, portanto, em que se questiona a dicotomia entre sujeito e objeto, trazendo o intérprete para o próprio âmbito da interpretação, é que se passou a revisar, em círculo hermenêutico, as pré-compreensões que conformavam, de forma subrepitícia, cômoda e extremamente danosa, o chamado sentido comum teórico dos juristas.3O sentido comum teórico dos juristas (conceito formulado por Luís Alberto Warat), por sua vez, consiste no conjunto de sabe-

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res acumulados, convenções acerca do Direito e da Sociedade, elaborados e estabelecidos pelos juristas e capazes de propiciar a emergência, velada, de ideologias tradicionalistas e retrógradas no processo de interpretação, que se dá de forma acrítica e a-reflexiva. Trata-se de um "conhecimento que se encontra na base de todos os discursos científicos e epistemológicos do Direito" (STRECK, 2007, p. 67). Segundo Bourdieu, cita Lenio Luiz Streck:

...há, na verdade, um conjunto de crenças e práticas que, mascaradas e ocultadas pela communis opinio doctorum, propiciam que os juristas conheçam de modo confortável e acrítico o significado das palavras, das categorias e das próprias atividades jurídicas, o que faz do exercício do operador jurídico um mero habitus, ou seja, um modo rotinizado, banalizado e trivializado de compreender, julgar e agir com relação aos problemas jurídicos, e converte o seu saber profissional em uma espécie de ‘capital simbólico’, isto é, numa riqueza reprodutiva a partir de uma integração combinatória entre conhecimento, prestígio, reputação, autoridade e graus acadêmicos. (STRECK, 2007, pp. 67-68 - grifo nosso).

Enfim, o que se pretende afirmar, neste tópico, é que, como afirma Heron José de Santana Gordilho em sua obra "Abolicionismo Animal", "a forma com que a maioria das pessoas trata os animais está relacionada a bloqueios psicológicos e conceituais inculcados através de uma longa tradição religiosa e filosófica, partindo do pressuposto de que os animais, destituídos de alma intelectual ou qualquer espiritualidade, existem apenas para o benefício da espécie humana" (GORDILHO, 2008, p. 17). Ou seja, o modo com que o homem se relaciona com os animais e como estes são compreendidos e tratados pelo Direito não é algo óbvio, natural ou evidente, mas historicamente construído e passível de reinterpretações, sobretudo de ordem moral, o que implica uma verdadeira revolução copernicana do pensamento. É o que se passará a tratar a seguir.

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2. Do especismo ao abolicionismo: a luta pelos Direitos dos animais e a (re)construção (ou releitura) de categorias como "Sujeito de Direitos" e "Personalidade Jurídica"

"Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros" (George Orwell).

2.1. Especismo

O termo "especismo" foi criado e utilizado, pela primeira vez, na década de 1970, em um panfleto contra a experimentação animal escrito por Richard Ryder, psicólogo britânico e professor de Psicologia da Universidade de Oxford, tendo sido apresentado ao universo acadêmico, posteriormente, através da obra "Victms of sicence" deste professor.

Conforme preleciona R. Ryder.4Especismo significa ofender os outros porque eles são membros de outra espécie. Em 1970, eu inventei a palavra em parte para desenhar um paralelo com o racismo e o sexismo. Todas essas formas de discriminação, baseadas como elas são na aparência física, são irracionais. Elas dissimulam a grande similaridade entre todas as raças, sexos e espécies. (RYDER, 1997 apud GORDILHO, 2008, p. 17 - grifo nosso).

Tal qual o sexismo e o racismo, posturas excludentes e preconceituosas que tomam por base critérios parciais, arbitrários, de diferenciação entre os seres, o especismo representa "um comportamento parcial que favorece os interesses dos membros de uma ou algumas espécies em detrimento das demais" (GORDILHO, 2008, p. 17). É possível falar-se, ainda, em duas formas distintas de especismo: o elitista e o seletista. A primeira refere-se à posição do homem relativamente às demais espécies de animais não-humanos; a segunda, por sua vez, trata do pre-

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conceito e discriminação existentes para com determinadas espécies animais apenas.

O norte-americano Gary Lawrence Francione - professor da University of Pennsylvania Law School e autor de obras como: Animals as Persons: Essays on the Abolition of Animal Exploitation (2008); Introduction to Animal Rights: Your Child or the Dog? (2000); Rain Without Thunder: The Ideology of the Animal Rights Movement (1996), dentre outras - identifica uma verdadeira "esquizofrenia moral" no que concerne ao especismo seletista, em razão do fato de algumas pessoas considerarem determinadas espécies animais, sobretudo domésticos, como membros da família, enquanto estas mesmas pessoas não demonstram a menor preocupação ou constrangimento em adquirir e consumir produtos fabricados a partir da dor, sofrimento e morte de outros animais, como bois e porcos.

O especismo, por fim, pode ser compreendido como "um con junto de idéias, pensamentos, doutrinas e visões de mundo, que têm como ponto de partida a crença de que os animais nãohumanos, sendo destituídos de atributos espirituais, não possuem nenhuma dignidade moral" (GORDILHO, 2008, p. 17). Ou seja, o especismo veicula uma ideologia reiterada através dos tempos e reproduzida...

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