A Cláusula Compromissória

AutorMarisa Choeypant
Páginas47-66

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I Introdução
I 1. A arbitragem e a cláusula compromissória – breve panorama sobre suas origens e evolução legislativa

Pode-se traçar1 a trajetória da arbitragem no Brasil desde a Constituição Imperial de 1824, em seu art. 1602. A partir daí, o assunto volta a ser tratado no Código Comercial de 1850, regulamentado pelo Regulamento 737; na Lei 1.350/1866; no Decreto 3.900/18673; no Código Civil de 1916; no Protocolo de Genebra de 1923 (art. 1º); no CódigoPage 48 de Processo Civil de 1939 e também no de 1973; na Lei 9.307/1996 (Lei de Arbitragemarts. 5º a 7º), no Código Civil de 2002 e no Decreto 4.311/2002 (Convenção de Nova York).

Dessa forma, não é difícil constatar que a arbitragem é um instituto bem antigo, desenvolvido por uma necessidade prática de resolver conflitos entre regiões (já que ainda não havia a noção de Estado-nação como compreendemos hoje). Existem dois tipos de arbitragem: a pública, que ocorre entre dois Estados que querem dirimir uma controvérsia, e a privada, entre particulares. A primeira é normalmente fundamentada em tratados, enquanto a segunda o é em compromissos e cláusulas compromissórias.

Por ser anterior aos Estados, a arbitragem é precede até mesmo ao Poder Judiciário. Hoje em dia, a morosidade deste encorajou o desenvolvimento desse instituto, mas historicamente não foi assim, já que o mesmo surgiu como instrumento autônomo.

No Brasil, apesar de a arbitragem não ser exatamente algo novo, é inegável que as mais importantes inovações no assunto foram trazidas pela Lei de Arbitragem, de 1996. A primeira menção à arbitragem aparece no artigo 160 da Constituição Imperial de 1824. Depois, o Código Comercial de 1850 previu diversas hipóteses de arbitragem obrigatória, concentrando-se mais no âmbito dos conflitos de contratos mercantis. Pouco depois, a Lei 1.350 aboliu essa arbitragem obrigatória, em 1866. No ano seguinte, o Decreto 3.900/18674 prejudicou o desenvolvimento da arbitragem no país, pois ele distinguiu a cláusula compromissória do compromisso5. O problema era causado pelo fato de a eficácia da cláusula compromissória estar vinculada ao firmamento de um compromisso no momento em que surgia o litígio. Dentro desse contexto, o descumprimento da cláusula compromissória não tinha conseqüência alguma. Naquela época, então, a execução específica dela significavaPage 49 firmar o compromisso. Hoje, finalmente, a cláusula compromissória leva diretamente à arbitragem.

Pode-se ainda falar em arbitragem interna e em arbitragem internacional. Nesta última, aplicam-se convenções como o Protocolo de Genebra6 e a Convenção de Nova York. O Protocolo não distingue os efeitos da cláusula compromissória e do compromisso. O Estado ratificante, então, tem que dar eficácia para ambos. O nosso Código de Processo Civil de 1939, porém, só conferia eficácia ao compromisso, e lei ordinária posterior prevalece sobre aquele tratado. Mesmo assim, “[v]isando adequar o Brasil à arbitragem comercial internacional praticada em outros países, boa parte da doutrina nacional defendia a equiparação da cláusula compromissória ao compromisso7. Atualmente, ambos os acordos internacionais estão vigentes no país.

Posteriormente a mencionada Lei da Arbitragem, foi promulgado o Código Civil de 2002, que contém três dispositivos sobre o tema8, mas que não modificaram aquela norma. Ela foi alterada pelo já referido Decreto 4.311/2002, no âmbito do reconhecimento de execução de sentenças.

Os laudos arbitrais, atualmente, têm o status de título executivo judicial, que não precisa ser homologado pelo judiciário9. Nem sempre, todavia, foi assim, o que resultava na supressão de uma das maiores vantagens da arbitragem, qual seja, a celeridade. Afinal, sua eficácia dependeria daquele poder. Da mesma forma, a sentença arbitral estrangeira também era dependente da homologação de um tribunal superior, além de dever ser homologado pelaPage 50 justiça do país de origem (duplo exequatur), exigência que não levava em conta que nem todo lugar adota esse procedimento. Hoje em dia, entretanto, o que importa é se o laudo tem valor de sentença na sua origem, desde que não haja violação da ordem pública.

A Lei de Arbitragem, dessa maneira, acabou com a distinção entre cláusula compromissória e compromisso10, além de prever “a execução específica da obrigação de instauração do juízo arbitral, com a substituição da declaração de vontade faltante pela sentença judicial11. Sendo assim, a cláusula compromissória agora tem efeitos jurídicos claros e concretos: “derroga a jurisdição estatal, podendo o interessado buscar o resultado prático dela pretendido através da execução específica da obrigação12. Por fim, ainda acabou-se com a exigência do duplo exequatur.

E como fica o direito intertemporal? Pode-se imaginar, como exemplo, uma situação em que no momento atual, em 2009, surja um conflito entre partes que assinaram uma cláusula compromissória em 1980. Uma delas pode alegar que, à época, era necessário o posterior firmamento de um compromisso. Para dirimir tal controvérsia, deve-se analisar qual a natureza da Lei de Arbitragem: processual ou material. O primeiro tem efeitos imediatos, enquanto o direito material privilegia os efeitos do momento da celebração (ato jurídicoPage 51 perfeito). Hoje, na jurisprudência, prevalece o entendimento de que a Lei n° 9.307/96 é norma processual e, portanto, incide até mesmo nos contratos constituídos antes de sua vigência13.

I 2. Constitucionalidade da Lei de Arbitragem

Para entender esse assunto, é imperativo fazer referência ao Agravo Regimental do STF na Sentença Estrangeira n° 5.206-7. Inicialmente, tratava-se de um caso de homologação de sentença estrangeira de uma arbitragem ocorrida entre uma empresa suíça e outra brasileira, cujo processo correu na Espanha. O pedido foi feito antes da Lei de Arbitragem, sendo então indeferido, pois o laudo não tinha sido homologado na origem, onde tal ato não é previsto. A Lei n° 9.307/96, por sua vez, tornou desnecessária a homologação na origem. Com essa mudança legislativa, o pedido foi reapreciado em sede de agravo regimental.

Nesse caso, nenhuma das partes estava opondo-se à homologação, até mesmo a perdedora que, no caso, era a empresa brasileira. Não era, então, hipótese de Sentença Estrangeira Contestada. O Ministro Moreira Alves, todavia, suscitou a inconstitucionalidade de alguns dispositivos da Lei de Arbitragem, que, se confirmada, resultaria novamente na perda da efetividade da cláusula compromissória, já que voltaria a ser necessário um compromisso para confirmá-la, como se pode perceber no seguinte trecho:

“(...) discussão incidental da constitucionalidade de vários tópicos da nova lei, especialmente acerca da compatibilidade, ou não, entre a execução judicial específica para a solução de futuros conflitos da cláusula compromissória e a garantia constitucional da universalidade da jurisdição do Poder Judiciário (CF, art. 5°, XXXV)14.

Os fundamentos do Ministro relator Sepúlveda Pertence para essa suposta inconstitucionalidade foram:

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  1. O artigo 5º, XXXV da Constituição: “a lei não excluirá da apreciação do poder judiciário lesão ou ameaça a direito”. A cláusula compromissória, então, não poderia impedir o acesso ao judiciário.

    Antes, realmente, havia leis que excluíam o acesso ao Poder Judiciário, quando definiam a obrigatoriedade da arbitragem. Aquele artigo constitucional, por sua vez, está voltado para o legislador, isto é, ele não pode editar leis que impeçam o indivíduo de acessar o judiciário. As partes, porém, responsáveis pela adesão à cláusula compromissória, podem decidir não acessá-lo, desde que exercendo ampla autonomia da vontade.

  2. No momento da assinatura da cláusula compromissória, não está definido o litígio a ser dirimido, as partes, então, não poderiam abrir mão de um direito com base em uma situação abstrata.

    Aqui cabe ressaltar que a cláusula compromissória estabelece uma limitação, referente a quais partes estão vinculadas. Além disso, a cláusula está presa ao objeto do contrato, não sendo obrigatória a arbitragem para dirimir conflitos fora do assunto do acordo. Ela ainda pode até estar vinculada a apenas certas cláusulas do contrato.

    Diante de tal controvérsia, o Ministro Nelson Jobim pediu vista e permaneceu com o processo durante anos. Por um lado, isso foi positivo, pois permitiu que o Tribunal e a doutrina compreendessem melhor a Lei de Arbitragem, tanto na prática, quanto na teoria. No fim, então, o ministro votou pela constitucionalidade da lei. Além disso, vale ressaltar que ele interpretou o artigo 7º15, um dos dispositivos cuja constitucionalidade foi questionada, como voltado apenas para a cláusula compromissória vazia, a ser explicada infra. A votação ficou em 7x4 e a constitucionalidade foi assentada. As razões de ambas as posições podem ser verificadas na própria ementa do acórdão:

    Constitucionalidade declarada pelo plenário, considerando o Tribunal, por maioria de votos, que a manifestação de vontade da parte na cláusula compromissória, quando da celebração do contrato, e a permissão legal dada ao juiz para que substitua a vontade daPage 53 parte recalcitrante em firmar o compromisso não ofendem o artigo 5°, XXXV, da CF. Votos vencidos, em parte – incluído o do relator – que entendiam inconstitucionais a cláusula...

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