Análise ds aspectos material e formal da Constituição

AutorFrancisco Davi Fernandes Peixoto
CargoBacharel em Direito. Universidade Federal do Ceará
Páginas1-15

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Considerações introdutórias

Antes de adentrarmos1 na análise dos aspectos material e formal das Constituições que será objeto desse trabalho, convém tecermos breves considerações acerca da Constituição em si mesma, da origem do Constitucionalismo, para melhor compreendermos este instrumento jurídico, social e político.

O termo “Constituição” tem suas origens no século XVIII, mais precisamente na Revolução Francesa2, tendo, portanto raízes na ideologia do liberalismo. OcorrePage 2 que, na época, os filósofos liberais buscavam garantir o então nascente conceito de liberdade individual perante o aparato estatal até então absoluto. Buscavam assim limitar atividade deste Estado absolutista, presente em todos os ramos da sociedade, mais opressor dos particulares e das liberdades e direitos individuais do que promotor do bem estar social.

No Estado Absolutista vigorava o então “Ancién Regime” que possuía com principais características3 o Poder ilimitado do monarca, soberano absoluto e verdadeiro representante de Deus na terra, e a falta de previsão legal de direitos básicos para os cidadãos. Aliás, a própria noção de cidadania sequer existia nos moldes que a concebemos hoje. A sociedade era estratificada em camadas, quais sejam a nobreza, o clero e os servos, nas quais a grande maioria integrava a terceira e última destas classes que vivia sobre condições paupérrimas num regime que hoje só poderia ser classificado como similar a escravidão.

O primado do príncipe era superior ao primado da lei. O monarca estaria livre das leis que ele próprio outorgava, não sendo obrigado à obedecer ao direito que ele mesmo criava.4 Destarte, é palmar que o motivo pelo qual os revolucionários franceses tinham verdadeira ojeriza ao poder do Estado é justamente o fato de terem convivido com essa presença deveras esmagadora do aparelho Estatal na sociedade, subjulgando por completo a liberdade individual. Ora, no Estado Absolutista a idéia predominante era a de que apenas o povo teria deveres para com relação ao Estado.

As instituições da sociedade feudal e monárquica que predominaram durante toda a Idade Média começaram a se esfacelar paulatinamente em vista da infiltração cada vez maior das idéias iluministas e liberais de liberdade individual, doPage 3 racionalismo, do contratualismo, da separação de poderes5 e da democracia, em meio às quais surgiu a idéia de um governo e de uma teoria constitucionais.6

Esta nascente filosofia iluminista ganhava cada vez mais força solapando as bases do “status quo” vigente. As idéias dos pensadores contratualistas começavam a surgir cada vez mais e com maior proximidade da realidade. Locke, Rousseal, Hobbes e Monstesquieu são apenas alguns dos principais nomes que podemos citar que contribuíram para este novo paradigma que marcou o surgimento do chamado Estado Moderno que apresenta dentre as suas características a existência de uma Carta Política de Direitos e Deveres referentes aos Estados e aos Cidadãos.

Segundo Noberto Bobbio7 a idéia de soberania popular teve sua origem justamente na oposição à idéia de soberania do príncipe. Vai mais além o jusfilósofo e estabelece que hoje inclusive já se poderia abandonar esta idéia de soberania popular nos moldes em que foi concebida, pois em verdade a soberania não seria do povo e sim dos indivíduos enquanto cidadãos.

1. Do Estado Liberal ao Estado Social

Mister é para nós aqui é ressaltar que todo sistema de poder, todo Estado politicamente organizado, tem por base uma ideologia, isto é um conjunto de valores sobre os quais o Estado se fundamenta e se legitima, sendo que, num EstadoPage 4 democrático, tais valores encontram unidade e fundamento numa Constituição. Os pensadores liberais propuseram a Constituição como mera forma de organização do poder, tendo a neutralidade ideológica também como sua meta em vista da visão do Estado como adversário da liberdade.8

O modelo de Constituição do Estado burguês liberal era um modelo que separava a sociedade do Estado9, separava o político do jurídico sob um pretenso manto de neutralidade ideológica, porém tal neutralidade era meramente aparente, pois ao proporem um modelo de Constituição os filósofos liberais já propunham, automática e simultaneamente, o seu modelo de Constituição.

A filosofia liberal era essencialmente individualista10, com a proteção do indivíduo frente ao Estado. As Constituições liberais caracterizavam-se, portanto por seu papel principal, que seria frear o aparato estatal, tendo inserido a idéia de Estado de Direito, isto é, não de um Estado acima do direito, detentor de todo direito, mas sim de um Estado inserido no direito, tendo de obedecer igualmente aos seus preceitos, em suma: um Estado limitado pelo direito.

A corrente de jusfilósofos que mais encontrou guarida na ideologia burguesa liberal foi o positivismo jurídico, com seu formalismo exacerbado, que igualava (e confundia) Direito, lei e Estado em um só ente. Com efeito são características do positivismo também o fetichismo legal, a interpretação meramente mecanicista do direito e direito como ordem imperativa e coativa.

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Alguns séculos depois o referido modelo liberal de Constituição passou a sofrer pesadas críticas. Com efeito, a crise e o fracasso do modelo liberal deram-se principalmente em face do formalismo extremo e de um modelo de Constituição fechado às mudanças sociais11, o que acabou por minar as bases da mesma. Deste modo, apesar de inicialmente ter atendido aos anseios de mudança social e rompimento com o modelo feudal absolutista, o modelo liberal não alcançou correspondência em relação aos novos anseios da sociedade, pois era incapaz de acompanhar a evolução desta, adaptando-se a mesma.

O absenteísmo estatal pregado pelo liberalismo em verdade acabou por legitimar a dominação econômica do capitalismo selvagem e a exploração do homem pelo homem. Baseando-se em bandeiras como a liberdade e a separação de poderes. Segundo Boaventura de Souza dos Santos12 a legitimação da exploração econômica capitalista se deu justamente com a separação entre Estado e sociedade civil, a fim de que as relações econômicas ficassem imunes a ingerência do poder político estatal.

Surgiu assim após meados do século XX um novo modelo de constitucionalismo, o chamado constitucionalismo social, que pregava uma ideologia de um Estado social, isto é, um Estado no qual não bastava a não intervenção na esfera individual dos particulares pra sua legitimidade, mas também a promoção dos direitos básicos e fundamentais destes. Destarte, conforme visto acima, o absolutismo da liberdade conduziria inevitavelmente a desigualdade entre os homens.

Viu-se que era necessária a atuação estatal a fim de regular as relações entre os particulares. Que a mão invisível do mercado por si só não garantiria as condições mínimas de sobrevivência digna aos seres humanos com o conseqüente desfrute de seus direitos fundamentais. A liberdade individual sem a igualdadePage 6 material seria em verdade um mal e não um bem, pois não haveria a igualdade social. Era chegada a crise da liberdade e da igualdade nos moldes liberais ironizada por Anatole France na célebre frase “Majestosa igualdade das leis, que proíbe tanto ao rico, como ao pobre, dormir sob as pontes, mendigar nas ruas e furtar o pão.”13

Mais do que uma postura neutra, o Estado Social toma para si a responsabilidade de realizar os direitos fundamentais dos cidadãos através de direitos verdadeiramente prestacionais encontrados nas Constituições. Segundo Robert Alexy “[...] en la Ley Fundamental se encuentra una serie de punto de apoyo objetivamente formulados para una interpretación que postula derechos a prestaciones.”14

A Constituição, mais que um mero texto formal, deveria também corresponder com a realidade, de modo que aos operadores do direito não caberia o estudo e análise do jurídico apenas, mas também da esfera material e, social, reaproximando, por conseguinte, o Direito da Sociedade.

  1. Aspecto material e formal das Constituições

Destarte, hoje o pensamento ocidental da maioria dos constitucionalistas é pacífico no ponto em que toda Constituição caracteriza-se por ter dois aspectos: um formal e um material. O aspecto formal da constituição diz respeito ao seu texto, isto é à matéria que é expressamente posta pela Carta Magna, devidamente promulgada por uma assembléia constituinte ou um soberano. São as “folhas de papel” nas quais são escritas as normas constitucionais. Estas por sua vez são justamente os dispositivos que estão postos15 no texto da Constituição, independente de o seu conteúdo.

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José Afonso da Silva16 divide o aspecto matéria das Constituições em dois sentidos, um amplo e um restrito. No sentido ou na acepção ampla a Constituição formal se identificaria justamente com a organização do aparelho estatal, com a feitura do regime político vigente, com os usos e costumes políticos existentes na criação e transmissão do poder. Já no sentido ou acepção restrita, a Constituição formal estaria identificada com as normas escritas que regulam a estrutura do Estado, seus órgãos e os direitos fundamentais do homem e do cidadão.

Já o aspecto material da Constituição não é aquele que se refere ao mero texto constitucional, mas antes de tudo à própria matéria que, por sua importância...

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