Direito de greve entre afirmação e repressão: o caso CSN

AutorCristiano Paixão e Ricardo Lourenço Filho
Páginas331-347

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1. Introdução

Promulgada a Constituição em 5 de outubro de 1988, teve início uma luta que se estende até os dias de hoje. Trata-se da disputa sobre o significado da Constituição e de sua dimensão de ruptura com relação ao regime anterior. Até que ponto a aplicação e a interpretação do novo texto constitucional conduziriam à interrupção das práticas de repressão a direitos e liberdades?

Essa questão, pertinente à dimensão temporal do sistema jurídico, pode ser examinada a partir do direito de greve que, apreendido como prática social3, reflete a disputa sobre o significado da Constituição.

A Constituição de 1988 prevê o direito de greve em termos inéditos em nossa história. A greve é prevista como direito fundamental, e aos trabalhadores é assegurada a decisão sobre a oportunidade de seu exercício e sobre os direitos que serão por meio dela defendidos. Entretanto, certas interpretações do texto constitucional, sobretudo as construídas pela jurisprudência dos tribunais trabalhistas4, tornam necessário enfrentar o problema do significado da Constituição e observar as operações e construções de sentido produzidas pelo sistema jurídico.

Poucos dias após a promulgação da Constituição, os trabalhadores da Companhia Siderúrgica Nacional, de Volta Redonda/RJ, deflagraram uma greve que marcou a trajetória das relações trabalhistas no país, bem como as disputas em torno do significado do novo texto constitucional. O objetivo deste artigo é identificar, a partir daquele conflito, como os atores sociais articularam a Constituição, isto é, qual uso foi feito do texto constitucional. E além: analisar, em termos temporais, as operações produzidas pelo direito.

O pressuposto da investigação é o de que a história constitucional pode atuar como fator de compreensão do direito. Segundo Antonio Manuel Hespanha, a missão da história do direito, enquanto disciplina, é "problematizar o pressuposto implícito e acrítico das disciplinas dogmáticas, ou seja, o de que o direito dos nossos dias é o racional, o necessário, o definitivo".5 Para o pesquisador português, as normas jurídicas não podem ser adequadamente

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compreendidas a partir da simples leitura de seu texto. Elas devem ser integradas aos complexos normativos que compõem a organização da vida em sociedade. Como observa Hespanha - e isso vale para a constituição e o direito constitucional -, "o direito tem um sentido meramente relacional (ou contextual). O papel da regulação jurídica não depende das características intrínsecas das normas do direito, mas do papel que lhes é assinado por outros sistemas normativos que formam o seu contexto. Estes sistemas são inúmeros e mostram a necessidade de apreensão dos chamados "poderes ‘periféricos’".6

A proposta é a de abordar o direito como um produto social, o que significa considerar que a produção do direito é também um processo social. Na precisa assertiva de Hespanha, "a ideia é a de relacionar o direito com os espaços sociais (...), explicando a partir daí os efeitos (jurídicos) produzidos". Além disso, o discurso jurídico possui um papel conformador sobre outros discursos. Em suas palavras, "o imaginário jurídico - produzido pelas condições específicas dos discursos e rituais do direito - pode mesmo modelar imaginários sociais mais abrangentes, bem como as práticas sociais que deles decorram".7

Os textos jurídicos se abrem a novos contextos e, diante disso, cabe ao historiador do direito evitar a reificação do significado de valores, categorias ou conceitos, pois eles passam por mudanças no sentido (contextual), uma vez que dependem mais das expectativas de seus leitores do que das intenções dos seus autores.8

A partir dessas premissas da história do direito, podemos indagar: diante de um contexto de mudança constitucional (1988), o que representa a permanência de determinadas posturas repressivas quanto ao direito de greve? Para enfrentar esse problema, pensando na disputa sobre o significado da Constituição e na dimensão temporal do direito, propomos examinar a greve da CSN de novembro de 1988.

2. "Exército rende piqueteiros da CSN"9

A Companhia Siderúrgica Nacional foi criada na década de 1940. Mas a primeira greve dos trabalhadores da Usina, em Volta Redonda, ocorreu tão somente em 1984.10 O Sindicato dos Metalúrgicos era presidido, à época, por Juarez Antunes.11 A paralisação durou cinco dias, de 20 a 24 de junho, e foi uma greve de ocupação. Na visão dos trabalhadores, não haveria como ser diferente: eles eram os únicos aptos a tomar conta dos equipamentos da Companhia. Como relatou o próprio Juarez Antunes, "a recomendação do sindicato de que a greve não era contra o equipamento criou entre os trabalhadores um forte sentimento de preservação do patrimônio da empresa".12

Após dois dias de greve, o Batalhão da Polícia Militar foi deslocado para a Usina. Não houve repressão, nem confronto, entre policiais e grevistas. A Polícia Militar tão somente marcou presença. Algumas reivindicações foram

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atendidas pela Companhia. Para os trabalhadores, no entanto, a maior conquista foi a própria realização da greve.13

Durante a paralisação, a Usina "pertenceu" aos operários. Além disso, como observa Edílson José Graciolli, "mesmo quando os resultados imediatos de uma greve ficam aquém do que se reivindicou (o que se dá na maioria das vezes), a greve pode significar um avanço na organização dos trabalhadores. Tal foi o caso dessa primeira greve na CSN. Para além do que se obteve, o saldo foi positivo, antes de mais nada, pela introdução da greve como instrumento de luta".14

Em 1º de outubro de 1986, os operários deflagraram nova greve.15 Veio, então, a primeira invasão da Usina pelo Exército. A paralisação foi realizada do lado de fora. No dia seguinte, porém, diante do pesado aparato militar, os trabalhadores retornaram à fábrica, encerrando o movimento. Nova paralisação ocorreu no dia 12 de dezembro do mesmo ano, acompanhando a greve geral deflagrada em todo o país. Como os trabalhadores entendiam que o Exército poderia ser mobilizado, fizeram a greve do lado de fora da Usina. O Exército chegou e, curiosamente, determinou que os operários fossem para dentro da Companhia. A Polícia Militar também estava presente. Pouco depois, nova ordem do Exército para que os trabalhadores saíssem de dentro da Usina.

Na opinião de Isaque Fonseca, então diretor do Sindicato dos Metalúrgicos, as ordens contraditórias evidenciavam que o objetivo do Exército era acabar com a greve.16 De toda forma, iniciava-se a prática militar de invadir a Usina com tanques, carros urutus17 e cascavéis, metralhadoras, fuzis e soldados.

A campanha salarial de 1987 também foi marcada pela greve dos metalúrgicos, em abril, deflagrada assim que as negociações foram interrompidas e a empresa propôs o dissídio coletivo na Justiça do Trabalho. A paralisação, a quarta "greve de ocupação" da CSN, contou com uma significativa organização dos operários e durou cinco dias. Não houve repressão e os trabalhadores obtiveram um reajuste salarial de 10% - o que foi, à época, considerado um excelente acordo.18

Com a greve geral convocada pela CUT, em agosto de 1987, a CSN parou novamente. Mais uma vez o Exército foi mobilizado para Volta Redonda e invadiu a Usina. Os militares recorreram à violência para retirar os operários de dentro da Companhia. Ao final, alguns diretores e operários foram detidos pelo Exército e a greve foi encerrada. Os trabalhadores foram retirados pelos militares do interior da Usina.

O ambiente de tensão no interior da CSN aumentava. Além das invasões do Exército, que se tornavam usuais nas greves, os trabalhadores vivenciavam, no aspecto remuneratório, uma situação de arrocho salarial, e, no campo da organização coletiva, um forte combate ao sindicato. Ocorreram demissões logo após a greve de 1987, e, dos 58 dispensados, 22 eram diretores sindicais. Segundo Wilma Mangabeira, "os acontecimentos de agosto de 1987 marcaram o fim da retórica ‘democrática’ da Companhia (...) inaugurou-se um período de repressão direta e de perseguições políticas na usina".19 Não obstante, a opção do sindicato em investir em comissões internas surtia resultado: os operários passaram a se articular sozinhos e expressavam sua resistência às condições de trabalho.20

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Em janeiro de 1988 foi deflagrada a greve dos empregados da Montreal, que é uma prestadora de serviços da CSN e que fica dentro da própria Usina. Houve nova invasão do Exército e a paralisação foi encerrada.

Também houve greve em maio de 1988. O sindicato tentou negociar com a empresa, mas a diretoria da CSN mostrava-se intransigente. A negociação dizia respeito não apenas à Usina, mas também à FEM (Fábrica de Estruturas Metálicas). Diante da ausência de uma proposta satisfatória por parte da CSN, que optou pelo dissídio coletivo na Justiça do Trabalho, os operários optaram pela greve, entraram na Usina e houve paralisação total. Após 65 horas de suspensão dos trabalhos na CSN, FEM e empreiteiras, o Exército invadiu a Companhia. A paralisação acabou chegando ao fim21.

Para a adequada compreensão dos conflitos na CSN, é preciso considerar que não é a intervenção do Exército simplesmente que põe fim a determinada greve. A continuidade ou não da paralisação depende de fatores mais complexos e, sobretudo, da dinâmica interna do próprio movimento (como a maior ou menos adesão por parte dos trabalhadores, ou a sua disposição à resistência). Devem ser vistos com cautela, portanto, os relatos de que a atuação da força militar per se teria conduzido ao término dessa ou daquele greve.

Todas essas greves, até aqui relatadas, como se percebe pelas datas, foram realizadas antes da Constituição de 1988. Vem, então, a pergunta: a promulgação da nova Constituição provocou alguma alteração nas reivindicações ou nos...

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