Sindicato e trabalhador: flexibilidade por meio do sujeito

AutorMárcio Túlio Viana
Páginas287-297

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Em geral, quando falamos em sindicato, lembramos apenas o seu aspecto coletivo, ou seja, o sindicato enquanto ser coletivo. Além disso, a análise que fazemos tende a ser - digamos assim - objetiva. Sua atual crise, por exemplo, costuma ser quantificada, basicamente, pelo número menor de filiações.

No Brasil, incorporamos um elemento a mais: a estrutura sindical, herdada de Vargas. Assim, para que o nosso sindicato desse um salto avante, superando as suas dificuldades, seria necessário e suficiente que eliminássemos os últimos vestígios do corporativismo, como o "imposto" e especialmente a liberdade sindical.

De forma semelhante, quando pensamos no Direito do Trabalho, tendemos a analisá-lo apenas como um conjunto de princípios, regras e institutos. Por isso, ao tratarmos também de sua crise, o que nos vem à lembrança são flexibilizações da lei. Às vezes nos esquecemos até mesmo de formas bem mais frequentes de flexibilizar, como a negociação coletiva, a jurisprudência, a doutrina, a própria fiscalização ou até mesmo a simples desaplicação da norma por parte de seus destinatários.

Pergunto: enfoques como esses - mais concretos ou explícitos - estariam equivocados?

Não diria isso. Mas talvez estejam incompletos, e por isso nos deem a impressão de que os problemas podem ser resolvidos facilmente. Além disso, às vezes vêm carregados de uma certa nostalgia, na medida em que tomam por referência alguns valores e estereótipos do passado; e assim nos impedem de pensarmos de forma mais livre o futuro. O que eu proponho, assim, é apenas questionar alguns aspectos diferentes da questão sindical, que - embora um tanto óbvios - têm sido relegados a um segundo plano.

Como ponto de partida, talvez possamos adotar a observação que um velho chefe sioux fez a um general norte-americano, na batalha pelas Black Hills: . "O Homem" - disse ele - "não tece a teia da vida. É antes um de seus fios. O que quer que faça a esta teia, faz a si mesmo"3.

O que essa frase nos revela? Ela nos chama a atenção para as nossas responsabilidades, mas sobretudo nos desperta para as infinitas interações do nosso século. Pois bem. Com essa ideia em mente, vejamos o que se tem passado com o homem trabalhador e como isso interfere no sindicato.

Como era esse homem trabalhador, há 30 ou 40 anos? Eu diria, para começar, que ele se parecia um pouco com o sindicato - não só quando agia, mas até mesmo quando sonhava. Aliás, de certo modo, ele também tinha algo do próprio direito que o protegia. Em certa medida o replicava - e vice-versa.

Para ilustrar essa ideia, valho-me da descrição de um sociólogo a propósito das vilas operárias de São Paulo4.

Conta ele que, na década de 30 ou 40, nos bairros mais elegantes da cidade, foram surgindo ricas mansões, todas elas ajardinadas. Aliás, como sabemos, São Paulo conserva um bairro com esse nome, o bairro Jardins.

Pois bem. Na mesma época, centenas ou milhares de famílias camponesas começavam a migrar para a cidade grande. E essas famílias, adotando a moda das mansões, enfeitaram também as suas casas com pequenos e bem cuidados jardins.

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Agindo assim, a mulher operária queria indicar como seria decerto o interior de sua casa, organizado e limpo. Ela também ensaiava um primeiro movimento de saída do lar, de contato com a rua. Mais do que tudo isso, porém, o jardim era o lugar onde a família plantava os seus pequenos sonhos e desde logo os colhia. O jardim era o símbolo do status que se queria alcançar, mas também, em certa medida, do que já havia sido alcançado.

E se a família operária tinha sonhos, alguns deles já realizados - a casa, o jardim, um ofício, um futuro - também os tinha o sindicato. Um sindicato que (direta ou indiretamente) ia obtendo novas conquistas, mesmo em países como o nosso. Um sindicato que pouco a pouco fundava partidos, alcançava os parlamentos e se fazia ouvir nos grandes debates ou nas grandes greves.

E o mesmo se podia dizer do direito. Um direito que se revelava progressista, aberto, inconcluso, como o definia o grande La Cueva. Um direito sempre ávido por novos patamares, como alguém que sobe uma escada. Um direito que sabia ser sonhador e paradoxalmente estável, perseguindo o mesmo e inalcançável objetivo de redistribuir riquezas, combatendo as desigualdades.

Na verdade, estáveis eram também as vidas daqueles operários, cujos sonhos se aproximavam de certezas, tornando-se quase visíveis a olho nu. Mesmo as convulsões sociais pareciam ter ficado menores, graças ao Estado do bem-estar social, que revitalizara algumas promessas já um tanto fragilizadas da Modernidade.

Interações como essas também aconteciam, de um lado, com as formas pelas quais se apresentava o Direito e, de outro, com os modos de ser da fábrica. Se, por exemplo, o trabalho era parcelado e ao mesmo tempo homogêneo, também era assim o Direito: detalhista, uniforme, abrangente, fosse basicamente por meio da lei, como no nosso modelo, fosse por via da convenção coletiva.

Quanto ao sindicato, também nesse aspecto replicava a fábrica. Na medida em que o empresário levantava as suas paredes, os trabalhadores iam construindo as deles. Cada organização correspondendo à outra. Revelando um pouco das interações do mundo, tanto o sindicato como a fábrica, tanto o direito como o Estado se mostravam grandes, ambiciosos, absorventes.

Nessa nova realidade, tão diferente da que havia vivido em seus primeiros tempos, o sindicato abandonara a utopia de um novo sistema para se tornar uma peça importante, e mesmo indispensável, ao sistema existente - não só para humanizá-lo e assim legitimá-lo, como para servir de interlocutor nos conflitos coletivos e desse modo disciplinar a própria classe operária5.

E como a norma trabalhista - à diferença da norma comum - opõe uma classe a outra, o que a torna muito mais propensa a ser descumprida, o sindicato servia não apenas para criá-la, como para torná-la mais efetiva - usando, para isso, a sanção paralela da greve.

É verdade que algumas vezes, ao longo desse tempo, o trabalhador agiu à revelia do sindicato, de forma individual e caótica. Foi o que aconteceu no Brasil, no período da ditadura, quando eram comuns - nas palavras de um autor6 - atos de sabotagem como os de trombar a máquina (= danificá-la), matar peças (fazer peças defeituosas) ou mesmo vendê-las para os concorrentes. Mais tarde, porém - uniformizando as lutas tal como a fábrica uniformizava o trabalho e as próprias roupas de trabalho - o sindicato canalizou essas revoltas para os grandes surtos de greves do fim dos anos 70 e início dos 80.7

Por outro lado, em certo sentido, o sindicato era parte do próprio trabalhador, compondo a sua identidade. O operário - já então desqualificado - enxergava-se no sindicato; realizava-se por meio dele, enquanto membro de um mesmo corpo. Sentia-se parte dele. Mais, talvez, do que o próprio trabalho, o sindicato era a expressão de sua cidadania, afirmava-o como sujeito de direitos, como homem que se indigna e reivindica.

Tudo isso - trabalho, fábrica, trabalhador, direito - se reforçava mutuamente, e também nesse sentido mais amplo se pode falar em compromisso fordista. Pois ele também era o resultado desse jogo recíproco de influências, o

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entrelaçamento dessas e de outras variáveis que existiam naquele tempo. Mas essas interações também tinham outra face: elas permitiam que os atores sociais se mimetizassem, cada qual se valendo das armas do outro. E essa estratégia era seguida especialmente por parte dos trabalhadores.

Na verdade, trata-se de um fenômeno mais antigo, e que apenas se tornou mais recorrente a partir do capitalismo. Até a música nos dá um exemplo - aliás, bastante curioso. Abro um pequeno parêntese para contá-lo.

Dizem alguns estudiosos que, nos Estados Unidos, ao tempo da escravidão, os grandes senhores proibiam os negros de conversar, para que não arquitetassem planos de fuga. No entanto, quando caía a noite, gostavam de ouvi-los cantar nas varandas da casa-grande. Valendo-se da oportunidade, os escravos inventaram a arte de conversar cantando. E daí teriam nascido não só belas fugas, como o gênero blues...

Numa das primeiras cenas de "Tempos Modernos", de Chaplin, o protagonista foge de um bando de gente, e para se defender aciona o comando da linha de montagem. Condicionados ao trabalho, os seus perseguidores o deixam em paz, voltando compulsivamente a apertar porcas e parafusos. Embora, naturalmente, trate-se de uma caricatura, a cena retrata esse mesmo aproveitamento pelos trabalhadores das armas do adversário.

No Brasil, fenômeno similar aconteceu na ditadura, quando militantes sindicais usavam banheiros das fábricas para planejar ações coletivas - especialmente as greves intermitentes, praticadas no próprio local de trabalho8.

Diz o depoimento de um trabalhador na época:

Quando todo mundo parou, começamos a conversar, aí o chefe começou a passar pelos corredores. Não perguntava nada, só chegava e olhava. A sensação era ruim porque a educação que a gente tinha era de ver o chefe e começar a trabalhar. A gente chegava e falava para os companheiros: a sensação é ruim mesmo, mas daqui a poucos minutos você vai se acostumando a ficar parado na frente do chefe, por isso aguente firme, vença o medo9.

Outro operário nos conta:

Quando o chefe quis pressionar um companheiro para que ligasse a máquina, mais de mil outros companheiros o rodearam e ele teve de sair de lá10.

Mas deixemos os anos de ouro do capitalismo e analisemos o trabalhador do fim dos anos 60 nos países centrais, ou de dez anos depois no Brasil. Como era ele? Na verdade, já não era o mesmo. Se os seus pais tinham aceitado os termos do pacto fordista - salários crescentes em troca de um trabalho repetitivo, alienado, monótono - ele próprio já não o admitia tão facilmente.

Até mesmo o homem que se escondia por detrás do operário era diferente. Tinha o mesmo espírito das outras minorias que saíam às ruas de Paris, Roma ou Nova Iorque - mulheres, negros, índios...

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