Direitos fundamentais e sociais trabalhistas, dignidade da pessoa humana, reserva do possível e proibição ao retrocesso social

AutorThais Safe Carneiro
Páginas198-211

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Ver nota 1

1. Introdução

Em pleno século XXI muitíssimo se tem falado2 - e sob diversas perspectivas (filosófica, legal, moral, política e religiosa) -, sobre direitos fundamentais e dignidade da pessoa humana. No entanto, ter sido alçado a um tema em voga não retira a dificuldade conceitual a ele vinculada. Bem ao contrário: mais se fala sobre dignidade humana, mais oscilante3 e fluido4 parece ser o seu conceito e mais ousada parece ser a tarefa de tentar atribuir-lhe, em poucas laudas, um sentido mínimo e vinculado, em geral, aos direitos fundamentais, e em especial, aos sociais.

Este o presente desafio.

2. Direito Fundamental ao Trabalho: perspectiva histórico-constitucional

Muitas foram as transformações ocorridas nas relações homem/trabalho nos últimos séculos. Da escravidão à atual era dos direitos trabalhistas, constitucionalmente protegidos e visceralmente relacionados à dignidade ínsita a todo ser humano, houve uma imensa evolução histórico-cultural e o Direito não pôde ficar imune a ela.

De acordo com Fábio Rodrigues Gomes5:

Considerando o enunciado linguístico contido no art. 6º de nossa Constituição, o direito ao trabalho é um direito social6. Entretanto nem sempre foi assim. Antes das manifestações operárias ocorridas no

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século XIX - que tornaram o direito ao trabalho o primeiro direito social historicamente reinvidicado frente ao Estado -, o sentido a ele atribuído era o de liberdade de trabalhar e, portanto, identificado com um direito tipicamente individual.

Há pouco mais de 200 anos, mais de metade da população brasileira era composta de homens, mulheres e crianças sem rosto, sem voz e sem direitos: escravos negros, originariamente trazidos da África, usados pelos brancos e aqui transformados em objetos7, "coisas"8, "propriedade". Seres humanos privados de sua própria humanidade e aprisionados por sua força de trabalho.

No Brasil, em 1871, a Lei do Ventre Livre passou a estabelecer que os filhos de escravos nasceriam livres, e em 1885, a Lei Saraiva-Cotegipe - conhecida como Lei dos Sexagenários - autorizava a libertação dos escravos com mais de 60 anos e somente em 13 de maio de 1888 - 80 anos depois da chegada do corte portuguesa ao Brasil - a Lei Áurea veio abolir a escravidão no Brasil.

Para Mauricio Godinho Delgado9 esse pode ser considerado um marco de referência na História do Direito do Trabalho no Brasil. Confira-se:

Embora a Lei Áurea não tenha, obviamente, qualquer caráter justrabalhista, ela pode ser tomada, em certo sentido, como o marco inicial de referência da História do Direito do Trabalho Brasileiro.É que ela cumpriu papel relevante na reunião dos pressupostos à configuração desse novo ramo jurídico especializado. De fato, constituiu diploma que tanto eliminou da ordem sociojurídica relação de produção incompatível com o ramo justrabalhista (a escravidão), como, em consequência, estimulou a incorporação pela prática social da fórmula então revolucionária de utilização da força de trabalho: a relação de emprego. Nesse sentido, o mencionado diploma sintetiza um marco referencial mais significativo para a primeira fase do Direito do Trabalho no país do que qualquer outro diploma jurídico que se possa apontar nas quatro décadas que se seguiram a 1888.

Paralelamente10, com a Revolução Industrial inglesa - iniciada no Reino Unido em meados do século XVIII e expandida para o mundo a partir do século XIX - e suas máquinas têxteis e a vapor, tem início a inserção do trabalho com máquinas no lugar do simples trabalho humano manual.

Começa aí, na Europa, com o surgimento do proletariado, a germinar a semente do Direito do Trabalho com a associação11 dos trabalhadores que passaram a se reunir para reivindicar melhores - e menores - jornadas de trabalho (mulheres e menores chegavam a trabalhar 16 horas por dia recebendo metade do que era pago aos homens).

Segundo Amauri Mascaro Nascimento12:

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O proletário é um trabalhador que presta serviços em jornadas que variam de 14 a 16 horas, não tem oportunidades de desenvolvimento intelectual, habita em condições sub-humanas, em geral nas adjacências do próprio local da atividade, tem prole numerosa e ganha salário em troca disso tudo.

As condições indignas de trabalho, de então, eram totais. E como elas eram impostas pelo empregador, dono das máquinas de trabalho, era ele quem exigia jornadas extenuantes, trabalho de mulheres e crianças com pagamento mais barato em relação ao trabalho do homem, salário reduzido e até servidão vitalícia13.

Parte desse quadro começa a mudar a partir do fim da Primeira Guerra Mundial com o constitucionalismo social e, a partir do qual, foram inseridas, nas constituições de diversos países, normas de interesse social tendentes a garantir alguns direitos fundamentais, dentre os quais o Direito do Trabalho.

Uma das primeiras constituições a trilhar esse caminho foi a do México, em 1917, estabelecendo, em seu art. 123, jornada diária de oito horas, proibição de trabalho de menores de 12 anos, limitação de jornada dos menores de 16 anos a seis horas, descanso semanal, proteção à maternidade, salário mínimo, direito de sindicalização e de greve, seguro social e proteção contra acidentes de trabalho14.

A ela seguiu-se a Constituição alemã de 1919 (conhecida como Constituição de Weimar), o Tratado de Versailles que previu a criação da Organização Internacional do Trabalho e a Carta del Lavoro da Itália, de 1927, que passou a estabelecer uma ordem trabalhista mais centralizada já com forte interferência estatal e que viria a influenciar, anos depois, a política trabalhista idealizada por Getúlio Vargas.

Mas antes disso, no Brasil, o que pode ser chamado de primeiro período de evolução no Direito do Trabalho15, estende-se de 1888 a 1930 na fase conhecida como de manifestações esparsas ou incipientes. Aqui, as relações empregatícias - e um movimento operário ainda sem capacidade de organização e pressão (incipiente) - vincula-se principalmente a uma debutante industrialização em São Paulo e no Rio de Janeiro que figuravam com os centros urbanos mais importantes do país.

Além disso, grassava no Estado brasileiro uma postura não intervencionista típica de Estado liberal16, uma descentralização política regional e ausência de produção e vontade legislativa para fazer face à questão social.

Assim, a partir de 193017, e já em seu segundo período de evolução e na chamada fase de institucionalização18, o Direito do Trabalho passou a ser tratado de maneira específica em nossas constituições garantindo-se, então, liberdade sindical, isonomia salarial, salário mínimo, jornada de oito horas de trabalho, repouso semanal e férias remuneradas (art. 121 da Constituição de 1934).

A Constituição de 1937, fortemente inspirada na Carta del Lavoro da Itália e marcadamente intervencionista, instituiu o sindicato único imposto por lei, criou o imposto sindical, estabeleceu a competência normativa dos tribunais do trabalho. No entanto, a greve e o lockout, no dizer de Sério Pinto Martins19 "foram considerados recursos antissociais, nocivos ao trabalho e ao capital e incompatíveis com os interesses da produção nacional (art.139)".

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Aqui, o Estado intervencionista controlou de perto as relações trabalhistas e - à exceção dos anos de 1934 e 1935 e da Constituição de 1934 na qual se assegurava maior autonomia sindical - sobretudo com o estado de sítio de 1935 e com a ditadura de 1937.

Nesse período, e abafadas as resistências às estratégicas políticas de governo, firmou-se o modelo trabalhista brasileiro com a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (Decreto n. 19.443 de 26.11.1930), o Departamento Nacional do Trabalho (Decreto n. 19.671-A), a normatização sindical com base no sindicato único (Decreto n. 19.770 de 19.3.1931), a criação da Justiça do Trabalho (Decreto-lei n. 1237 de 1.5.1939) e o início da criação do sistema previdenciário a partir das anteriores Caixas de Aposentadoria e Pensões.

Assim estruturado, o modelo trabalhista e suas respectivas normas foi consolidado, anos depois, no Decreto-lei n. 5452 de 1.5.1943, denominado de Consolidação das Leis Trabalhistas.

Apenas com a ebulição do movimento pela democracia coroado pela Constituição de 1988 esse modelo justrabalhista passou a sofrer maiores questionamentos em decorrência da busca sedenta por um Estado de Direito, mais social e menos desigual, no qual haja, segundo Fábio Rodrigues Gomes20 "um chamamento ao reequilíbrio de forças entre sujeitos desiguais, seja através da contenção do mais forte - como, por exemplo, a vedação de alteração, pelas maiorias eventuais, de determinadas matérias contidas na Constituição (art. 60, parágrafo 4º, da CRFB/88) e a sujeição irrestrita dos atos administrativos ao princípio da legalidade (art. 37, caput, da CRFB/88) -, seja através de concessão e certa musculatura jurídica àquele que dela não dispõe".

Apesar disso, parece ser inegável que, com a última constituição brasileira se buscou corrigir o rumo político-jurídico de um recém-saído estado autoritário com o fito de criar as bases para um Estado de Direito21 que tivesse como objetivo central a proteção da pessoa humana não apenas no plano individual, mas, na amplidão de suas relações sociais e trabalhistas já que, é com o trabalho que a manutenção da vida se perfaz, devendo o direito social ao trabalho ser visto, a seu turno, como um direito social fundamental e, quiçá, talvez, o mais importante.22

3. Dignidade e Direitos Fundamentais Sociais

A questão da dignidade (humana) - e dos direitos fundamentais a ela relacionada - pode ser considerada sob diversas perspectivas23, dentre elas: como sendo um valor inerente a todas as pessoas, independente...

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