A fábula do dinossauro trabalhista: discursos midiáticos sobre direitos e lutas coletivas

AutorClarice Costa Calixto
Páginas46-61

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ver nota 1

1. Introdução

Na produção de uma cobertura adversária2 à política, a mídia3 brasileira tece em suas narrativas a fábula das trapalhadas do Estado, dono de um dinossauro que atende pelo nome de Direito do Trabalho4.

A construção simbólica dessa figura de dinossauro no imaginário coletivo nas últimas décadas, com seus significativos efeitos na realidade da economia do trabalho brasileira e na dinâmica da representação e atuação coletiva dos trabalhadores5, é o objeto de estudo deste texto.

Após breve retomada do desenvolvimento histórico da ordem jurídica trabalhista no Brasil, passaremos à análise de alguns aspectos do processo de mercantilização do trabalho e do papel das formas atípicas de contratação no cenário de capitalismo flexível, com um enfoque especial: o fenômeno da pejotização, referente à contratação de trabalhadores sob o rótulo de "prestação de serviços de pessoas jurídicas", que precariza direitos e enfraquece as lutas coletivas dos trabalhadores.

Por fim, analisamos a realidade dessa precarização e desse enfraquecimento de lutas coletivas no mundo do trabalho jornalístico, visando demonstrar que as cores do dinossauro não são pintadas por acaso na fábula midiática.

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2. Antes do desenho do dinossauro: as lutas dos trabalhadores e os sistemas de proteção social

No sistema capitalista de produção vigente no século XX, a exploração da força de trabalho é paradoxalmente legitimada6 e limitada pelo Direito. Os limites impostos pelo Direito Individual do Trabalho são resultado de duras lutas coletivas dos trabalhadores, no exercício da autonomia privada coletiva, desde a Revolução Industrial. As (im)possibilidades desses limites possuem contornos distintos de acordo com o cenário político-econômico de cada sociedade.

Nas tensões entre enrijecimento e afrouxamento desses limites, é importante o posicionamento dos atores do mercado de discursos públicos, pelo seu protagonismo na construção social da realidade em sociedades informacionais.

Neste artigo, temos como hipótese que a mídia é um ator do mercado de discursos públicos que nos conta o Direito do Trabalho como dinossauro. Em suas narrativas diárias, tece uma fábula segundo a qual os modelos de proteção social implementados pelo Estado de Bem-Estar (Welfare State) estão caducos e o formato ideal de Estado é aquele que pouco intervém, que não atrapalha o funcionamento "natural" e eficiente da economia de mercado (e, portanto, da economia do trabalho).

Falamos em "mercados de discursos públicos" porque é preciso destacar que os veículos midiáticos não são apenas canais que buscam divulgar notícias "vendáveis", nem podem ser compreendidos como conjunto de textos organizado em torno de espaços de publicidade de terceiros. Conforme Lattman-Weltman, eles estão inseridos num mercado de discursos públicos:

Além desses [mercados de divulgação de informações e de propaganda], a mídia opera num outro mercado em que versões e narrativas a respeito da realidade social e historicamente compartilhada se difundem, são omitidas, se valorizam e desvalorizam, no resultado frequentemente imprevisível das lutas políticas e ideológicas de uma sociedade complexa e diferenciada7.

Para compreender a metanarrativa subjacente à narrativa jornalística do Direito do Trabalho no mercado de discursos públicos, é importante investigar "as razões de formação, existência e continuidade da ordem jurídica trabalhista e as relações que esta tem com as respectivas sociedades, em seus diversos planos - social, político, econômico, cultural -, em particular com a síntese traduzida pelo Welfare State."8

Não cabe neste artigo, evidentemente, um estudo histórico acerca do desenvolvimento do Direito do Trabalho no Brasil, fenômeno extremamente complexo tanto sob uma perspectiva institucional quanto sob olhares não institucionais. Não recorremos a fontes primárias, não adotamos um recorte metodológico que nos permita traçar conclusões a respeito de episódios da História do Direito do Trabalho.

No entanto, para que tentemos compreender o contexto em que o Direito do Trabalho é pintado hoje como dinossauro, para que possamos ler essa fábula nas entrelinhas das notícias, reportagens e artigos jornalísticos de todo dia, propomos um breve resgate de alguns eventos da trajetória surgimento-desenvolvimento-precarização dos direitos trabalhistas no Brasil, a partir de relatos de historiadores e comentários de juristas.

O surgimento do Direito do Trabalho no Brasil ocorreu no cenário dos processos sociais da industrialização e da urbanização9 do início do século XX. As indústrias urbanas, localizadas principalmente na região sudeste, eram marcadas pela repressão, pelo trabalho infantil e por jornadas extensas10.

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Muitos industriais tinham sido donos de escravos. As fábricas eram comparadas a cárceres, havia jornadas de trabalho de até 17 horas por dia e regulamentos internos que chegavam a impor castigos físicos para trabalhadores que realizassem atos considerados como indisciplina11.

"Leis sociais somente começaram a surgir na década de 20 (lei sobre acidentes do trabalho - 1923; Lei Elói Chaves, sobre aposentadorias e pensões - 1923; e Lei de férias - 1926)", em um ambiente de reivindicações de movimentos sindicais inspirados em teorias anarquistas, socialistas e comunistas12.

Lembrar desse ambiente de opressão e de resistência13 é importante para desconstruir a versão contada por muitos de que o Direito do Trabalho nasceu no Brasil com o governo de Getúlio Vargas, resultado da ação estatal, sem luta, sem conflitos, como uma concessão paternalista (de veia fascista) e não como uma conquista dos trabalhadores, fruto de lutas coletivas. Nesse sentido, há inúmeras pesquisas sobre as lutas coletivas do início do século XX, em que se destacam as greves, exercício do direito de resistência manifestado por meio da autonomia privada coletiva.

Para demonstrar a relevância da disputa de versões sobre as origens do Direito do Trabalho no imaginário coletivo, vejamos trecho de editorial da Revista Época:

Obra da ditadura de Getúlio Vargas, experiência autoritária que se prolongou entre 1930 e 1945 e marca o país até hoje, a Consolidação das Leis do Trabalho é um totem que há 70 anos define o cotidiano de cada trabalhador brasileiro.

Entre 1941 e 2012 o país urbanizou-se, teve três Constituições diferentes, os analfabetos deixaram de ser maioria na população e as mulheres se tornaram maioria no ensino superior. (...) A CLT, porém, não mudou. Seu DNA é paternalista e fascista. Ela é formada por artigos e parágrafos de caráter imutável, quando o país, as empresas e os próprios assalariados poderiam se beneficiar com modificações simples e fáceis de fazer.14

Não há dúvida de que a regulamentação das relações de trabalho no Brasil se construiu sob condições de forte autoritarismo gerencial.15 Inspirada na Carta Del Lavoro do regime fascista italiano, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) apresenta aspectos bastante restritivos, especialmente no que concerne à liberdade e autonomia sindical.

No entanto, as conquistas consagradas na legislação trabalhista são relevantes:

A contrapartida, e o que provavelmente fez com que os trabalhadores aceitassem o reconhecimento de suas organizações sob o jugo do controle estatal, veio pela imposição legal às empresas de reivindicações16 trabalhistas elementares, objeto de décadas de lutas (...): limitação da jornada de trabalho em 48 horas, proibição do trabalho de menores de 14 anos, regulamentação do trabalho feminino, remuneração obrigatória

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da hora extra, descanso e férias remuneradas, condições de salubridade e proteção contra acidentes de trabalho, elevada indenização por dispensa imotivada, o que regulava a estabilidade no emprego para indivíduos com mais de dez anos de trabalho, entre outros. (Rodrigues, 1968; Vianna, 1999; Rodrigues, 1974; Keck, 1988).17

O crescimento do Direito do Trabalho ao longo do século XX explica-se pelo advento dos regimes ocidentais de bem-estar social, viabilizados pelo fortalecimento do papel do Estado na economia a partir da década de 30, em cenários de predomínio da macroeconomia keynesiana, que condenava o liberalismo e oferecia uma política concreta de intervenção para corrigir situações de depressão econômica18.

A abrangência do regime de bem-estar social, de modo geral, pode ser assim descrita: "(a) direito ao trabalho;

(b) políticas de ataque à pobreza; (c) proteção contra riscos individuais e sociais e (d) mecanismos e políticas de promoção de oportunidades equânimes".19

No campo jurídico, esses regimes foram marcados pela positivação de direitos sociais, como o direito à saúde, o direito à educação, o direito à aposentadoria e, notadamente, os direitos relacionados ao trabalho, objeto deste estudo.

Ocorreu, assim, "a absorção gradativa pelas ordens jurídicas europeias de normas trabalhistas, conferindo cidadania social e política aos trabalhadores, como indivíduos e como grupo social". Mas esses regimes não se resumem a políticas públicas, pois traduzem «também uma maneira de organização da sociedade civil, em que se dá prevalência às ideias de liberdade, democracia, valorização da pessoa humana e valorização do trabalho, especialmente o emprego».20

Especificamente no que concerne a essa valorização do emprego nos "anos dourados" do regime de bem-estar social, é...

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