Autocomposição

AutorEvaristo de Moraes Filho - Antonio Carlos Flores de Moraes
Ocupação do AutorProfessor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - Professor do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Páginas497-514

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1. Considerações gerais - A autocomposição pressupõe a negociação livre e direta entre as partes envolvidas no conflito, sindicatos representativos das categorias econômica e profissional, empregadores e empregados, sem qualquer ingerência de terceiros, quer sejam conciliadores, mediadores ou árbitros. As três espécies mais conhecidas são a tradicional convenção coletiva, o acordo coletivo e o contrato coletivo aplicado em qualquer âmbito (por empresas, setorial, regional ou nacional).

No texto aprovado no Plenário da Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, a chamada Comissão Afonso Arinos, a redação do inciso XVIII do art. 343 ficou da seguinte forma: "reconhecimento das convenções coletivas de trabalho e incentivo à prática da negociação coletiva". Na justificação, Evaristo de Moraes Filho, como relator, expôs que "o texto atual refere-se unicamente às ‘convenções coletivas de trabalho’ (art. 165, XIV, Emenda n. 1, de 1969). Preferimos acrescentar-lhe a expressão ‘negociação coletiva’ por constituir esta o gênero do qual qualquer negócio jurídico coletivo celebrado é espécie. Este é o instrumento jurídico que lhe coroa o êxito e passa a lhe dar eficácia. A negociação pode ser sindical, global; com algumas empresas somente, ou ainda com uma única; pode abranger a totalidade da categoria, parte dela ou parcela mínima, mas sempre traz em si a marca da indeterminação abstrata da coletividade. Num regime democrático deve ser aconselhada a sua prática, fomentada e exercitada a negociação coletiva entre empregados e empregadores, como o processo mais representativo e autêntico da autonomia coletiva privada, à margem dos organismos estatais e alheia ao seu paternalismo".

Prosseguindo, Evaristo comenta que "em 1932 escrevia o então ministro do Trabalho Lindolfo Collor - in LOUZADA, Alfredo João. Legislação social-trabalhista. publicação oficial. Rio de Janeiro, 1933. p. 429: ‘Para que os homens se compreendam é necessário que se encontrem num terreno de lealdade e numa atmosfera de tolerância. A compreensão já vale por um começo de acordo. Sempre que dois homens, representantes de interesses opostos, se reúnem para discuti-los, a previsão normal é a do entendimento que entre eles surgirá. Este, em poucas palavras, o princípio humano que anima as comissões de comissão’. Onde se lê comissões, ponha-se negociação, e o princípio é o mesmo".1

O nosso passado, no entanto, caracteriza-se pela intervenção exagerada do Estado na vida econômica da sociedade, especialmente a partir de 1937, o que inibiu a prática da negociação direta entre empregado e empregador para a solução de seus conflitos de interesses. Houve, nesse período, pelo contrário, o crescimento do regulamentarismo estatal da vida do trabalho.

Legislou-se acerca da convenção coletiva por indústria ou nível setorial e, posteriormente, acordo coletivo por empresa, mas olvidou-se de estimular a prática da negociação, conforme estabelecido na Recomendação da OIT n. 163, de 1981. Obrigou-se o sindicato de participar da negociação (art. 616 da CLT), embora inexista qualquer previsão legal do

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dever de negociar de boa-fé, como no direito norte-americano.

Quanto ao primeiro aspecto, a Organização Internacional do Trabalho recomenda que medidas sejam adotadas para que: a) haja definição objetiva da organização representativa dos empregados e empregadores para os fins de negociação coletiva; b) essa negociação possa se desenvolver em qualquer âmbito e, em particular, no estabelecimento, na empresa, no setor de atividade da indústria e abrangendo apenas uma determinada região ou todo o país. Havendo a negociação coletiva desenvolvida em diversos níveis, recomenda-se que as partes negociadoras devem cuidar para que haja coordenação entre elas. Além do mais, os negociadores, com formação adequada, devem ter poderes necessários para conduzir e concluir as negociações, obtendo, inclusive, as informações necessárias.

Quanto ao exemplo norte-americano, Benjamin M. Shieber2 admite que é muito difícil provar a falta de boa-fé, mas existem alguns requisitos substanciais, como ocorreu no caso "Katz", de 1962: "É uma violação do dever de negociar de boa-fé, para um empregador unilateralmente modificar condições de trabalho durante as negociações com o sindicato, não importando se essas condições de trabalho estão escritas na antiga convenção coletiva ou se elas são as condições costumeiras da empresa". Caso o empregador alegue falta de lucros como fato impeditivo de promover aumento salarial, deve dar acesso de sua contabilidade ao sindicato dos empregados, não devendo este, por seu turno, promover greve no período da negociação.

Em um país como o nosso, de larga formação romano-germânica, é de se estranhar a inexistência de atos legislativos que regulamentem a ação sindical, quer seja: a) para fomentar o pleno desenvolvimento e o uso de procedimentos de negociação voluntária, com o objetivo de regulamentar, por meio de contratos coletivos, as condições de emprego (Convenção n. 98 da OIT, de 1949); b) para criar facilidades aos representantes dos trabalhadores, visando a permitir o pronto e eficaz desempenho de suas funções (Convenção n. 135 da OIT, de 1971); c) para permitir que as organizações de trabalhadores desempenhem um papel no desenvolvimento econômico e social (Convenção n. 141 da OIT, de 1975); d) para possibilitar às organizações de empregadores e empregados criarem mecanismos de consultas tripartites com as autoridades governamentais, visando à aplicação das normas internacionais do trabalho (Convenção n. 144 da OIT, de 1976); e) para conceber que os órgãos e procedimentos de solução de conflitos trabalhistas sejam concebidos de maneira a contribuir para fomentar a negociação coletiva (Convenção n. 154 da OIT, de 1981).

Não obstante todas as falhas em nossa legislação vigente, é necessário que se observe que a convenção coletiva é a aspiração, o desiderato, o fim almejado de toda negociação coletiva. De acordo com o magistério de Evaristo de Moraes Filho, "as partes interessadas - sindicatos, sindicatos e empresas ou sindicato e empresa - reconhecem suas divergências e se reúnem para discuti-las e procurar lhes dar uma solução conveniente e razoável (standard de razoabilidade), capaz de manter a tranquilidade e a paz social. Em um regime de liberdade, qualquer tema que interesse às partes pode ser motivo de debate e constar do instrumento alcançado, desde que sejam respeitados a ordem pública, os bons costumes e os direitos adquiridos, mais favoráveis aos trabalhadores. Nos países da common law, representam o verdadeiro direito escrito, objetivo, das relações entre empregados e empregadores. Nos países de tradição romano--germânica, são a complementação e a melhoria da própria legislação estatal, regulamentarista. Foi nesse sentido que Girod a admitiu, classificando-a - como já o fizera Léon Duguit - de ato-regra, que funciona como lei profissional, colocando-a numa posição de meio-termo entre a categoria e a lei geral do Estado, como legislação secundária do trabalho".3

Essa é a tendência da jurisprudência atual, entendendo ser tal instrumento de negociação coletiva como legislação secundária do trabalho, conforme se pode depreender do estabelecido na nova redação da Súmula n. 277 do TST, no sentido de que "as cláusulas normativas dos acordos coletivos ou convenções coletivas integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser modificados ou suprimidas mediante negociação coletiva de trabalho".

Com base nesse entendimento, como a política nacional dos salários atualmente está baseada na livre negociação coletiva (Lei n. 8.542, de 23.12.1992), o art. 623 consolidado deveria ser entendido como revogado, considerando que eiva de nulidade a convenção que contrarie proibição ou norma disciplinadora da

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política econômico-financeira do governo. Não se pode afirmar, no entanto, que esteja revogado porque o Governo Federal voltou a ingerir-se na vida sindical, ao estabelecer medidas complementares ao Plano Real, quando: a) veda a estipulação ou fixação na convenção, no acordo ou no dissídio de cláusula de reajuste ou correção salarial automática vinculada a índices de preços; b) obriga a dedução, nas revisões salariais na data-base anual, das antecipações concedidas no período anterior à revisão; c) determina que qualquer concessão de aumento salarial a título de produtividade deverá estar amparada em indicadores objetivos (art. 13 da Lei n. 10.192/2001).

O próprio TST não reviu a sua Súmula aprovada em 2005, que tomou o n. 375, com a seguinte redação: "Súmula n. 375. REAJUSTES SALARIAIS PREVISTOS EM NORMA COLETIVA. PREVALÊNCIA DA LEGISLAÇÃO DE POLÍTICA SALARIAL: Os reajustes salariais previstos em norma coletiva de trabalho não prevalecem frente à legislação superveniente de política salarial".

O próprio TST cancelou em 2011 a Súmula n. 349, cuja redação original era "a validade de acordo coletivo ou convenção coletiva de compensação de jornada de trabalho em atividade insalubre prescinde da inspeção prévia da autoridade competente em matéria de higiene do trabalho (art. 7º, XIII, da CF/1988; art. 60 da CLT)". Assim, manteve-se íntegra a redação intervencionista da CLT, mantendo-se o entendimento do art. 60, no sentido de que qualquer prorrogação somente poderá ser acordada mediante licença prévia das autoridades competentes.

Assim, um passo à frente e dois atrás no caminho de se superar o intervencionismo governamental.

2. Convenção coletiva - Esta expressão, "convenção coletiva", foi utilizada, inicialmente, entre nós, por ocasião do Decreto n. 21.761, de 23.8.1932, cuja segunda Exposição de Motivos, elaborada pelo ministro Salgado Filho, elucida: "Desde que corpos coletivos se vinculem a um pacto, esse pacto é uma convenção". E voltou a ser aplicada a partir de 1967, quando foi rompida com o Decreto-Lei n. 229, de 28 de fevereiro, neste aspecto, a influência da Carta del Lavoro na elaboração da CLT, em...

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