Remuneração

AutorEvaristo de Moraes Filho - Antonio Carlos Flores de Moraes
Ocupação do AutorProfessor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - Professor do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Páginas324-355

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1. Salário e política - No direito do trabalho, o salário surge como uma contraprestação do serviço do trabalhador, consequência lógica do caráter sinalagmático, comutativo e oneroso do contrato de trabalho. Trata-se, portanto, de um direito nitidamente individual, decorrente da relação jurídica privada entre o empregador e o empregado.

Com o tempo, o conceito de salário transcendeu os limites individuais do contrato e ganhou, especial-mente com o direito previdenciário, características mais nobres, passando a ter caráter social e natureza alimentícia.

Sob o aspecto social, o salário passou a corresponder à renda nacional, parcela integrante do Produto Interno Bruto (PIB), bem como a constituir base de cálculo para a tributação, para as contribuições previdenciárias e para o FGTS. Assim, ficou patente o caráter social do salário, pois, quanto maior a renda per capita, melhor a qualidade de vida da população. Deve-se acrescentar, ainda, que o aumento da renda nacional gera o incremento da poupança interna e, em consequência, o desenvolvimento econômico.

No que se refere à segunda característica, o salário deixa de ser mera contraprestação dos serviços do empregado para se transformar na renda de sustento da família. Na sua falta, inclusive, em caso de desemprego e morte, o salário, justamente por ser fator preponderante na alimentação da família, é substituído pelos benefícios previdenciários. A dignidade da família, célula-mater da sociedade, depende do próprio salário, que deverá provê-la razoavelmente.

A partir de então, o salário deixa de interessar apenas à Ciência Jurídica e ingressa, definitivamente, nos debates econômicos e sociológicos.

Os doutrinadores econômicos consideravam o salário como subproduto da teoria do emprego, sendo o seu valor decorrente da taxa de desemprego existente no país. As primeiras teorias dos economistas clássicos e neoclássicos são:

a) Adam Smith - exposta em Riqueza das Nações, de 1776: salário de subsistência ou salário natural (termo dos fisiocratas franceses Cantillon e Turgot - a expressão fundo de salário vem da agricultura, ou seja, o fundo onde eram guardados os grãos). A variação salarial ocorreria a longo prazo tendo em vista a evolução sincrônica entre a população e a demanda de trabalho; no curto prazo, era fixado pelo "fundo de salário", ou seja, o salário médio deve ser igual ao resultado da divisão da massa salarial e o número de empregados;

b) David Ricardo - teoria exposta nos Princípios da economia política e do imposto (1817), divide o salário em "preço natural", a mesma definição de Smith, e "preço de mercado". Se este for superior ao natural, o empregado poderá ter mais filhos, aumentando, assim, a população;

c) Karl Marx - considera que o salário é a expressão monetária do valor da força de trabalho. Divide-o em "valor de utilidade ou uso", capacidade de trabalho do assalariado e "valor de troca", quando era avaliado o tempo

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do trabalho para a produção e reprodução da força de trabalho. Cria a taxa de exploração, que é igual a divisão da mais-valia e o salário. Define os sem empregos como exército dos desempregados, que justifica o fato de os empregadores manterem o salário baixo;

d) Alfred Marshal - no seu principal livro, Princípios (1890), estabelece o equilíbrio parcial da economia, defendendo que o salário aumenta a capacidade de trabalho. Em haven-do uma melhor eficácia do trabalho, acarreta uma melhor produtividade do capital. Tudo isso junto gera uma melhora das condições físicas e psicológicas do assalariado;

e) Léo Walras - sua obra mais conhecida, Elementos da economia política pura ou teoria da riqueza social (1874), estabelece o chamado equilíbrio geral. Em linhas gerais, Walras considera que os assalariados e as empresas dispõem de uma informação perfeita sobre os salários e as oportunidades de emprego no mercado de trabalho. Este é concorrencial, composto de um grande número de empresas e assalariados. Todos os empregados no mercado de trabalho estão abertos à concorrência entre os assalariados, não havendo barreiras institucionais à mobilidade dos salários. Para ele, o trabalho é uma mercadoria como qualquer outra, o que tornaria impossível de se estabelecer uma teoria geral da formação do salário;

f) John M. Keynes - sua tese é defendida no livro Teoria Geral do Emprego (1937), quando apresenta a teoria do salário nominal baseada nos seguintes pontos:

f.1) os próprios trabalhadores fazem comparação de seus salários;

f.2) define demanda efetiva como a capacidade marginal de capital e a taxa de interesse do produto ou do bem (causa inversa provoca uma baixa dos salários reais);

f.3) considera a teoria do salário como subproduto da teoria do emprego, uma vez que o subemprego força o valor salarial para baixo;

f.4) rompe com o princípio dos neoclássicos de salário real e nominal, ao criar a teoria da rigidez do salário nominal decorrente da resistência dos empregados de terem salários reduzidos.

Verifica-se que todas as teorias defendidas por esses principais pensadores da ciência econômica demonstram a inexistência de um princípio autônomo do salário. No pós-guerra de 1945, o valor salarial passa a ser objeto de livre negociação entre os sindicatos de empregados e empregadores.

No século XX, mais precisamente até a década de 1970, parecia estar vitoriosa a teoria da regulação salarial, ao contrário da tese dos economistas, quando as forças sindicais substituíam o poder do Estado, estabelecendo em negociação os valores, independentemente de uma política macroeconômica. Permaneciam fixados pelo Estado o salário mínimo de subsistência, mas a partir dos acordos de Grenelle, na França, em 1968, o salário mínimo interprofissional passou a ser admitido, podendo ser fixado pelas próprias categorias.

Diante das conquistas dos trabalhadores na Europa, os empregadores reagem a partir da década de 1980 do século XX, enfraquecendo o Estado como provedor do bem-estar social, e, com a tecnologia nova, dispensam grande número da força de trabalho. Desamparados pelo Estado e sem emprego, ressurge o exército de reserva industrial, citado por Marx, forçando mais ainda a redução salarial. Para piorar a situação, a globalização possibilita a permanente chantagem patronal de fechamento de suas empresas em determinada "praça", levando-as para outras cuja mão de obra é mais barata. O Estado fragilizado é presa fácil nas mãos do capital volátil, passando a servir como mero instrumento dos poderosos. O resultado é a transferência da arrecadação de impostos para pagamento das dívidas contraídas exatamente com eles, os poderosos, impedindo a adoção de uma política desenvolvimentista em benefício da população local.

O salário, portanto, voltou a ser subproduto da teoria do emprego.

É sempre bom lembrar a existência de outras formas de pensamento não oriundas da nação hegemônica, que não restringem a questão do debate dos salários no campo exclusivamente político e econômico. Por exemplo, na doutrina social da Igreja, o justo salário passou a ser matéria de preocupação, desde o século XIX. Leão XIII, em 1891, assim se pronunciou sobre o assunto: "... a questão de que se trata é de tal natureza que, a não ser apelar para a religião e para a Igreja, é impossível encontrar-lhe uma solução eficaz. Ora, como é principalmente a Nós que estão

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confiadas a salvaguarda da religião e a dispersação do que é de domínio da Igreja, calarmo-nos seria aos olhos de todos trair o Nosso dever".1

Nessa mesma encíclica, o Papa Leão XIII enuncia outro direito do operário. Trata-se do direito ao "justo salário", que não pode ser deixado "ao livre acordo das partes: de modo que o dador de trabalho, uma vez paga a mercadoria, fez a sua parte, sem nada mais ser devedor".2

Nos cem anos transcorridos, muito foi produzido pela doutrina social da Igreja, culminando com a Encíclica Laborem Exercens de João Paulo II, que considera ser o problema-chave da ética social o da justa remuneração do trabalho que é executado. Segundo suas próprias palavras: "No contexto atual, não há maneira mais importante para realizar a justiça nas relações entre trabalhadores e dadores de trabalho do que exatamente aquela que se concretiza na remuneração do mesmo trabalho. Independentemente do fato de o trabalho ser efetuado no sistema da propriedade privada dos meios de produção ou num sistema em que a propriedade sofreu uma espécie de ‘socialização’, a relação entre o dador de trabalho (em primeiro lugar, o dador direto) e o trabalhador resolve-se à base do salário, quer dizer, mediante a justa remuneração do trabalho que foi feito".3

A doutrina social da Igreja tem influenciado uma série de legislações no mundo inteiro, passando do Tratado de Versailles até diversas Convenções da Organização Internacional do Trabalho.

Em nosso país, apesar de ter melhorado o nível de renda da população nos últimos anos, mas a excessiva concentração de renda em nossa história, caracterizada por um capitalismo selvagem secular, tendo sido nós o último país ocidental a exterminar com a escravidão negra (1888), faz com que a diferença entre os mais ricos e os mais pobres ainda seja muito grande.4

Diferença entre os mais ricos e os mais pobres por país

País D9/D1 Noruega 2,09
Suéci 2,30
França 2,96
Japão 3,01
Austrália 3,10
Alemanha 3,14
Coreia 4,52
Estados Unidos 4,75
México 6,01
Venezuela 6,85
Chile 7,86
Paraguai 8,78
Brasil 9,71
Argentina 10,58

Não podemos nos esquecer, por exemplo de que durante o período autoritário militar vigeu entre nós o art. 623 da CLT, cuja redação foi dada pelo Decreto--Lei n. 229, de 28.2.1967, nos seguintes termos:

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Art. 623. Será nula de pleno direito disposição de Convenção ou Acordo que, direta ou indiretamente, contrarie proibição ou norma disciplinadora da política econômico-financeira do Governo ou concernente à política salarial vigente, não produzindo quaisquer efeitos perante autoridades e repartições...

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