Natureza Jurídica do Contrato de Trabalho - Relações de Trabalho e Espécies de Trabalhadores

AutorEvaristo de Moraes Filho - Antonio Carlos Flores de Moraes
Ocupação do AutorProfessor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - Professor do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Páginas234-244

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1. Classificação das teorias - Podemos distinguir em dois grupos as teorias que pretendem explicar a natureza jurídica do contrato de trabalho: tradicionais ou civilistas e teorias do próprio direito do trabalho. Justifica-se a breve exposição das primeiras meramente por motivos históricos e sistemáticos, nada mais, pois já se encontram inteiramente superadas, apesar de seus esforços cerebrinos para tentar explicar o que lhes escapava. Ficamos com Castán Tobeñas: "Estão, a nosso juízo, condenados ao fracasso todos os intentos científicos que pretendem captar o sentido do vínculo de trabalho, referindo-o unilateralmente às clássicas constituições da técnica ius privatista ou desligando-o completamente delas para enquadrá-lo em novas estruturas, enraizadas no direito público ou na sociologia jurídica".1 Tem razão Tobeñas, grande catedrático de direito civil e ex-presidente da Suprema Corte, pois também devem ser evitadas as teorias totalitárias que dissolvem o contrato de trabalho num nevoeiro institucional e regulamentarista do próprio Estado.

2. Teorias clássicas - Locação - Originária do próprio direito romano, o contrato de trabalho nada mais seria do que uma das espécies da locatio (rei, operis e operarum). Nessa última: o empregador seria o locatário e o empregado seria o locador de serviços, nada mais.2 Dela foram adeptos os civilistas do século XIX, embora a encontremos ainda defendida por Planiol, Barassi, Oviedo, este último trabalhista e em nossos dias. "A coisa locada, escreve Planiol, é a força de trabalho que reside em cada pessoa, e que pode ser utilizada por outrem, como a de uma máquina ou de um cavalo".3

Já no começo do século, mostravam Lacantineire e Wahl que a locação se distingue do contrato de trabalho pela própria natureza da prestação prometida. Na locação, restituiu-se a coisa, finda esta em sua substância e forma. Isso não acontece no contrato de trabalho, quando a capacidade do trabalho se incorpora no próprio objeto da obrigação de fazer do empregado. "Não se pode conceber o uso e gozo de um ato, conservando o serviço sua forma e substância", nas palavras de Folch. Falsa e forçada a teoria da locação, deve ser abandonada, pois, como adverte Corrado, seria um retrocesso a volta à locatio hominis, ignorando a inseparabilidade da força do trabalho da própria pessoa do trabalhador como um todo.4

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3. Compra e venda - Esta teoria foi surpreendentemente defendida por um autor de origem católica, da Escola de Le Play, 1902, chamado Paul Bureau. No mercado de trabalho, o trabalhador vende a sua força de trabalho, que é a coisa vendida, em troca de um preço, que é o salário.5

Em crítica, como argumento social e político, podemos dizer que o trabalho humano não pode ser considerado mercadoria, principe dirigent de todas as legislações do mundo, como enuncia o art. 427 do Tratado de Versalhes de 1919. Ademais, juridicamente, trabalho, capacidade, atividade, ação não podem ser igualados a uma coisa, em sentido próprio e técnico. De outro lado, não se trata de uma obrigação de dar (como coisa), mas, sim, de fazer: não existe a res da compra e venda. A atividade é inseparável da pessoa do empregado, daí o seu caráter intuiti personae e infungível.6

Também não procede a tentativa da Carnelutti, de 1913, equiparando, ainda como compra e venda, o fornecimento de trabalho ao fornecimento de energia elétrica. "O que permanece com o trabalhador é a fonte de uma energia, isto é, seu próprio corpo; a energia, no entanto, sai dele e não volta mais." A obrigação de fazer do trabalhador se desdobra em dois momentos; quando o trabalhador faz, concorda em deixar que a sua energia seja utilizada pelo empregador. A prestação é do homem, mas o seu objeto é uma coisa (a energia).7

Como na primeira teoria, rejeita-se mais essa pelo seu artificialismo. Sem o núcleo psicológico e social da personalidade humana, nada mais significa a sua energia do que algo morto, sem vida própria. Não pode a energia humana ser equiparada a uma coisa, material ou imaterial, pois o que fica com o empregador não é essa energia, inseparável da pessoa do empregado, e sim o produto por ela elaborado. Mais tarde viria a escrever o próprio Carnelutti: "Com satisfação, tenho visto que se começa a compreender que o objeto do contrato de trabalho e dos direitos que dele derivam para o patrão não é senão aquele mesmo homem, que é normalmente o outro sujeito do contrato".8

Na compra e venda, de qualquer espécie, tem-se em vista a alienação de uma coisa, ainda que esta possa ser acompanhada, como prestação acessória, de certa atividade pessoal do transmitente.

No contrato de trabalho, não se quer operar a transmissão de um objeto, já que o trabalho não é mercadoria transmissível porque é inseparável da pessoa que o executa.

4. Sociedade - Já com outro sentido, defendeu Chatelain em 1904 a teoria de que o contrato de trabalho é um contrato de sociedade pelo qual ambas as partes colocam alguma coisa em comum (união, concerto de atividade, inteligência, ciência, força, habilidade e técnica), tendo em vista dividir o benefício que daí advém. Capital e trabalho, tais são as coisas em comum, sendo o salário parte do produto ou do produzido.

Outros autores, como Lyon-Caen, Renault, Villey, Buylla e Hinojosa, filiam-se também a essa corrente. Mais sonho do que realidade, bastam estas palavras do próprio Hinojosa Ferrer, como crítica: "A teoria da associação é, sem dúvida, a mais conforme com a dignidade humana, a que melhor protege os direitos essenciais da personalidade. O contrato de trabalho é, contudo, totalmente distinto do contrato de sociedade civil, que acarreta consigo a repartição dos ganhos dos sócios".

De fato, falta ao contrato de trabalho a affectio societatis, no mesmo nível de deliberação e de coordenação, próprio da sociedade, como espírito de comunhão e identidade de interesses. Nem adianta o remetente de Lorin e Duthoid, que vê no contrato de trabalho uma sociedade sui generis ou uma associação mista de sociedade civil e contrato subordinado. Suas opiniões são econômicas, sociais, "belas teorias", como as denominam Alarcón y Horcas, mas longe da realidade dos nossos dias.9

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5. Teorias de direito do trabalho - Anticontra- tualistas - Inominado ou não, até vinha o contrato de trabalho sendo considerado como um negócio jurídico bilateral, em que predominava o acordo de vontades. Vai caber à doutrina alemã a crítica a essa posição contratual, fiel à sua melhor tradição medievalista, revigorada ainda no século passado por Gierke. Apesar de tudo, como contrato de serviço (Dienstvertrag), aparece o contrato de trabalho no Código Civil de 1900 (BGB). Somente mais tarde é que se voltou à teoria relacionista, mais de cunho pessoal do que patrimonial. As duas teorias mais radicais são a teoria da inserção e a da ocupação do empregado na empresa.

Para Molitor, "em realidade, inexiste contrato, passando o empregado a fazer parte da empresa, quando nela se insere, se inclui ou de fato se incorpora, daí o nome da teoria (Einordnung). Já com o ordenamento nazista em vigor, desde 1933, constitui Nikisch uma outra muito próxima da anterior, a da ocupação (Bechaeftigungsverhaeltnis). O contrato, diz o autor, não é o fundamento para a ocupação ou pertinência no estabelecimento, e sim a real e fática ocupação de um posto, de um lugar no organismo empresarial, comunidade de trabalho organizado. Já anteriormente, defendera Siebert uma opinião de igual teor fático e relacionista, não contratual. Estabelece-se a unidade da relação de trabalho e da pertinência à comunidade do estabelecimento, quando se dá de fato esta incorporação (Eingliederung in die Betriebsgemeinschaft)".

Por qualquer dessas teorias, muito assemelhadas, refletindo o mesmo regime político social, não há contrato, mas simples relação de fato, de inserção, de ocupação ou de incorporação, pela qual nasce o status de empregado. Tudo se inicia e se aperfeiçoa com a efetiva prestação de trabalho. Chamam-na os alemães de faktische Beschaeftigungsverhaeltnis - relação de ocupação fática.10

6. Teorias acontratualistas francesas (Duguit, Scelle, Durand, etc.) - Ao lado dessas concepções radicais, acontratualistas absolutas, podem ser apontadas outras posições, mais antigas e de origem de países latinos. Já em 1922 defendia Georges Scelle a noção de engajamento (embauchage) como início do possível contrato de trabalho, mediante simples consentimento tácito de adesão. Essa adesão é um mero ato-condição. Para ele, no entanto, nada impede que o engajamento possa ser total ou parcialmente contratual, com livre discussão de cláusulas e consideração subjetiva dos agentes.

Nessa mesma linha de Scelle colocam-se al-guns institucionalistas franceses, como Hauriou, Renard, Cuche e mesmo Durand e Savatier. Procuram conciliar a institucionalização da relação de trabalho com a clássica noção do contrato, fruto da civilização e dignificador da personalidade humana. O contrato caminha para o estatuto, para uma situação institucional e regulamentarista, embora ainda não se tenha chegado a esse estado de maneira absoluta.

"Entre a instituição e o contrato não há então oposição. O estabelecimento patronal é provido de um estatuto imperativo... Estas normas determinam as condições de funcionamento do estabelecimento. Este direito da instituição é independente do direito do contrato, lhe é, em certo sentido, anterior." O papel do contrato consiste em fazer o trabalhador entrar na sociedade profissional, determinando-lhe a aplicação individual de sua situação institucional. Tais são as ideias, resumidas, de Paul Durand. Outras não são as de Savatier, que enxerga nessa matéria um relacionamento paracontratual: "A existência de um contrato tornou-se quase indiferente. As relações existentes entre as partes ligadas por uma relação de trabalho são quase total-mente idênticas às que surgiriam se tivesse havido contrato. É nada mais do que uma relação de fato paracontratual."11

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