Contrato Individual de Trabalho. Conceito, Nota Característica - Sua Classificação entre os Pactos Privados

AutorEvaristo de Moraes Filho - Antonio Carlos Flores de Moraes
Ocupação do AutorProfessor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - Professor do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Páginas197-207

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1. O contrato individual de trabalho e o direito do trabalho - Embora constitua o contrato individual de trabalho o núcleo central do direito do trabalho - como realização prática e concreta das suas disposições tutelares -, não pode ser aceito o exagero de Capitant e Cuche, quando o admitem como objeto único dessa disciplina.1 Como acontece em qualquer outro ramo jurídico, é por meio dessa relação concreta que se desencadeia a aplicação das normas do direito do trabalho. Representa ele o negócio jurídico certo na vida do trabalhador: existe, existiu ou existirá; em ato ou em potência.

É por intermédio do contrato de trabalho (sem adjetivação, subentende-se sempre individual) que se concretizam, se materializam, tornando-se reais e eficazes as medidas das outras fontes normativas do direito do trabalho, desde a Constituição até o regulamento de empresa. Com ele, a linguagem de Kelsen completa-se e acaba por se inteirar o tecido conjuntivo da realização do ordenamento jurídico positivo. Daí a importância primordial e inequívoca do contrato de trabalho; daí o interesse do seu estudo, prático e teórico a um só tempo. Dele decorre, ainda, o maior conteúdo da vida social em nossos dias, inclusive no que diz respeito à competência da Justiça do Trabalho.

2. Terminologia - Histórica e sistemática - A denominação tradicional, oriunda do direito romano, era arrendamento ou locação de serviços (locatio operarum). Foi recebida pelos códigos civis modernos, desde o napoleônico (1804), passando pelo italiano (1865), até o brasileiro de 1916. O alemão de 1900 o denomina contrato de serviços (Dienstvertrag).

Na doutrina, porém, é relativamente antiga a denominação contrato de trabalho, surgida, a princípio, nos livros de economia, desde 1872. A doutrina jurídica começou a adotá-la, ao que parece, anos mais tarde (1885). Podem ser lembrados os ensaios de Bitzer, Brentano, Schmoller, Dankwart, Oppenheim, Hubert-Valleroux, Tartufari, De Luca, Jannacone, Modica, Vadalà-Papale, Betocchi, até culminar nos magníficos tratados de Barassi e de Lotmar, nos primeiros anos do século XX. Alguns economistas o apelidavam de contrato de salário (Sombart, Loria, Gide). É inadequada a denominação, pois o objeto principal desse negócio jurídico é o trabalho, vindo o salário como contraprestação.2

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Ao que parece, o primeiro diploma legal a admitir a expressão contrato de trabalho foi a lei belga de 10 de março de 1900. Coube logo depois à lei francesa de 18 de julho de 1901 repeti-lo, mandando conservar o emprego dos convocados para o serviço militar. Daí para diante o seu uso tornou-se pacífico (Países Baixos, 13 de julho de 1907; na própria Fran-ça, Código do Trabalho de 1910, etc.). Já Evaristo de Moraes dela se utilizava, entre nós, em 1905.

Planiol, tradicionalista, preferia locação de trabalho, achando a nova terminologia tão absurda como contrato de casa. A resposta é fácil. Preso aos cânones do direito romano, baseado este na escravidão do homem-coisa, não quis compreender a nova concepção do prestador de serviços como pessoa livre e digna, isto é, "o trabalho refere-se à própria pessoa do contratante, e facilmente se percebe o quanto há de artificial na análise que pretende, ao assimilar o trabalho humano a uma coisa, separar a força de trabalho da pessoa do trabalhador".3

Aceitaríamos a crítica de Planiol, se ela houvesse se dirigido à excessiva amplitude da denominação, pois aí se subentende somente o trabalho subordinado, e não o autônomo ou o liberal. Por isso mesmo, a melhor denominação seria contrato ou relação de emprego, como querem alguns autores.4 O uso, porém, já consagrou a expressão, com limites e conceitos precisos. E o uso, já o escreveu Horácio na Arte Poética, é o supremo árbitro da linguagem.

3. Conceito de contrato individual de trabalho - Abandonando todas as inúmeras e possíveis definições de contrato de trabalho propostas pelos vários autores,5 podemos conceituá-lo como o acordo pelo qual uma pessoa natural se compromete a prestar serviços não eventuais a outra pessoa natural ou jurídica, em seu proveito e sob suas ordens, mediante salário.

Analisando o conceito, podemos explicitar mais ainda:

4. Ato jurídico bilateral - O contrato de trabalho é um ato jurídico bilateral, que depende da livre manifestação da vontade de ambas as partes, para que sua celebração seja válida e possa surtir todos os efeitos práticos garantidos pela ordem jurídica. Por isso mesmo lhe são aplicáveis os ensinamentos da teoria geral dos contratos do direito comum, naquilo que não sejam incompatíveis com o direito do trabalho, principalmente no que diz respeito aos chamados vícios de consentimento.

5. Pessoa natural (empregado) - Somente pode ser empregado pessoa natural, física, e nunca uma entidade, pessoa jurídica, coletiva. O contrato de trabalho, quanto à pessoa do prestador de serviços, ainda o é, na maioria dos casos, intuitu personae, isto é, celebrado tendo em vista as peculiares qualificações pessoais e profissionais de determinado candidato a emprego. O empregado não pode fazer-se substituir por outrem sem permissão do seu empregador. A carteira profissional, com as qualificações do empregado, inclusive com a sua impressão digital, é intransferí-

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vel e personalíssima. Ainda nos casos de contrato de equipe (estiva, orquestra, etc.), está-se sempre diante de um feixe de contratos individuais, concretamente identificáveis; mera contratação plúrima.6

6. Prestação de serviços - Trata-se, pelo visto, na prestação de serviços, de um contrato de ativi-dade, de uma obrigação de fazer, pelo qual alguém se compromete a colocar a sua força de trabalho ou "capacidade de trabalho" (Capitant-Cuche), a sua atividade, enfim, a favor de outrem.

7. Serviços não eventuais - Continuidade - É necessário, porém, que esses serviços não sejam even-tuais, e sim contínuos, permanentes.7 Entende-se por continuidade de serviços a possibilidade que o contrato de trabalho contém em si de se prolongar indefinidamente no tempo, colocando o empregado a sua força de trabalho à disposição do empregador de modo contínuo. Essa continuidade é relativa, pois é de todo impossível uma absoluta continuidade na prestação do trabalho. Não só se podem dar interrupções e suspensões normais (intervalo entre jornadas, repouso semanal, férias, licenças, afastamentos temporários, etc.), como igualmente o trabalho pode ser realizado parcialmente (sem horário integral, na jornada ou na semana) ou com longos intervalos no tempo.8 Importa somente fixar a intenção das partes em se manterem engajadas para uma prestação contínua, segundo a lei ou as cláusulas do próprio contrato. Conta uma com a outra ou fica à disposição uma da outra até final ruptura do pacto.

É próprio do contrato de trabalho esta faciendi necessitas que, diluída no tempo, constitui e justifica a sua própria continuidade. O trabalhador eventual, ocasional mero biscateiro, fazedor de bicos, não chega a ser um empregado, não se reveste de tal status, nem faz com que se desencadeiem em sua proteção as normas da legislação do trabalho. Dispõe o art. 3º da CLT: "Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário". Na prática, em certos casos concretos, é muito difícil distinguir o serviço efetivo do meramente eventual ou ocasional. O assunto é delicado, por um lado, pelo perigo de fraude à lei (empregador) e, por outro lado, pela má-fé de se forçar uma relação de emprego inexistente (possível empregado).

O critério mais aceito é o indicado pela Suprema Corte mexicana e seguido por La Cueva, baseado na necessidade permanente da empresa de determinado serviço ou mão de obra. "Isto é, que não se trata de um serviço meramente acidental, cuja repetição somente possa ser consequência do concurso de circunstâncias especiais ou, o que é o mesmo, que o serviço não faça parte das atividades normais, constantes e uniformes da empresa. Depreende-se do exposto que a existência de um empregado efetivo não depende de que o trabalhador preste serviço todos os dias, mas que o referido serviço seja prestado de maneira uniforme, em períodos de tempo fixos. Assim, por exemplo, o serviço que presta uma pessoa duas vezes por semana a uma empresa constitui um emprego efetivo, mas não o será se só por uma circunstância acidental, desarranjo de uma máquina, se chama um mecânico especial, e concluído esse trabalho, fica desligado o trabalhador, sem que se saiba se voltarão ou não a ser utilizados os seus serviços".

A tese de La Cueva precisa, no entanto, ser esclarecida. Não deixaria de ser eventual ou ocasional um trabalhador que, numa emergência, substituísse um empregado efetivo que faltasse ao serviço por horas ou mesmo dias. A atividade era necessária e permanente na empresa, mas, para esse trabalhador, a sua prestação não deixaria de ser acidental e subjetivamente avulsa. Mostra Cabanellas que o trabalho ocasional ou acidental decorre de uma exigência momentânea, como no caso de uma empresa de telefones que se sirva de um trabalhador para levantar um poste derrubado por uma tempestade. Por isso mesmo, dizemos nós, devem ser consultados todos os elementos objetivos e subjetivos na realização do contrato ou na prestação de serviço. A intenção das partes é da maior importância (art. 112 do CC). Bem sabem elas, ambas, de boa-fé, se seria um serviço eventual ou não.9

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8. Pessoa natural ou jurídica - Empregador - Empresa - A pessoa a quem os serviços são prestados pode ser natural ou jurídica. O empregador pode ser um simples indivíduo, uma firma individual ou uma sociedade, uma pessoa jurídica, uma fundação. Costuma-se confundir, entre nós, empresa com pessoa jurídica, o que não é tecnicamente correto. A primeira é objeto de direito, de propriedade ou de titularidade de uma pessoa natural ou jurídica, estas, sim, sujeitos de direito, legítimo empregador. Voltaremos a isso ao cuidar da figura da...

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