O Direito do Trabalho no Brasil

AutorEvaristo de Moraes Filho - Antonio Carlos Flores de Moraes
Ocupação do AutorProfessor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - Professor do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Páginas82-100

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1. Período pré-histórico - Em se tratando de uma obra jurídica, de cunho didático, concordamos plenamente com Cesarino Júnior quando joga todas as possíveis manifestações legislativas sobre o trabalho, anteriores a 1888, no que denomina período pré-histórico no Brasil. Essa data é, para o nosso assunto, a mais significativa possível, porque marca o fim do regime escravocrata entre nós e a virada brusca para a urbanização, o trabalho livre, o incremento da industrialização, com as consequências que daí se originam de formação do proletariado, constituição de movimento social e das agitações das ideias sociais. Com Sérgio Buarque de Holanda, diremos que "1888 é o marco histórico entre duas épocas - o instante talvez mais decisivo em toda a nossa evolução de povo".1

Contudo não deixaremos de registrar alguns movimentos libertários e alguns diplomas legislativos surgidos durante o século XIX, não recuando mais, aos tempos do Brasil Colônia, por se tratar, em matéria de direito positivo, de ficção, nada mais do que ficção...

2. Século XIX - A colonização portuguesa no Brasil foi latifundiária e escravocrata, "a única capaz de resistir aos obstáculos enormes que se levantaram à civilização do Brasil pelo europeu".2 Concordemos ou não com a frase de Gilberto Freyre, a realidade foi essa. Sua organização prolongou-se, praticamente, por todo o século XIX, o que não impediu de editarmos uma Constituição liberal em 25 de março de 1824, a primeira do Brasil independente e do Império. Procurou ela absorver os novos princípios da Revolução Francesa, com longa declaração de direitos individuais (art. 179). Em suas alíneas 24, 25 e 26, proclama a liberdade de trabalho, indústria e comércio, a abolição das corporações de ofícios, e assegura o privilégio de invenção. Trabalho livre continua regulado pelas disposições 29 a 35 do livro IV das Ordenações do Reino.

Afinal, em 13 de setembro de 1830, promulgou-se a primeira lei regulando o contrato por escrito sobre prestação de serviços celebrado por brasileiro ou estrangeiro dentro do Império. Em 11 de outubro de 1837, nova lei, de número 108, estabelecendo normas para locações de serviços dos colonos. Pela Lei n. 396, de 1846, fixam-se os vencimentos do caixeiro estrangeiro e limita-se o seu número nas casas comerciais, de forma precursora à nacionalização do trabalho entre nós. Mas, em verdade, vai caber ao Código Comercial de 25 de junho de 1850 o grande salto para a proteção do empregado do comércio. Várias são ali as disposições sobre preposição mercantil: art. 74, nomeação por escrito dos caixeiros; art. 79, salários até três meses, em caso de acidentes imprevistos e inculpados; art. 81, aviso-prévio de

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um mês para a despedida; art. 84, relação das justas causas para a dispensa; art. 80, indenização para os empregados, a juízo de arbitradores, em caso de dano extraordinário. A locação mercantil vem regulada nos arts. 226/246, e o contrato de ajuste marítimo é regulado pelos arts. 543 e seguintes.

Escrevemos em conferência recente, à qual remetemos o leitor: "Com extinção do tráfico africano em 1850, numerosos foram os capitais dos senhores rurais que ficaram disponíveis. Voltaram-se eles para outros negócios, de indústria e comércio, proporcionando ao país mais intenso desenvolvimento econômico. Dava-se a modernização da sociedade brasileira, sob todos os seus aspectos, merecendo destaque, nessa época, como tipo representativo, a figura de Mauá".

Com o café entrando firme na concorrência com o açúcar, deslocava-se o eixo econômico do Norte para o Sul. A massa escrava não dava vazão às necessidades dos novos senhores, que começaram a cogitar de tentativas com colonos livres, imigrantes estrangeiros e, de preferência, europeus e brancos. Cresciam as manifestações emancipatórias e mesmo abolicionistas. Convém serem aqui lembradas, como homenagem, as palavras de Tavares Bastos, grande liberal, bacharel da turma de 1858 das Arcadas do Largo de São Francisco, em uma das "Cartas do Solitário", de 28 de outubro de 1861, quando tinha o autor 22 anos de idade: "Há uma coisa que se esquece muito no Brasil, é a sorte do povo: do povo, que não é grande proprietário, o capitalista riquíssimo, o nobre improvisado, o bacharel, o homem de posição. Fala-se todo o dia de política (...) Ora-se a propósito de tudo, menos a propósito do povo. Escreve-se a respeito de Roma e Grécia, de França e Inglaterra; mas não se escreve acerca do povo. Enviam-se os sábios do país a estudar a língua dos autóctones, a entomologia das borboletas e a geologia dos sertões; mas não se manda explorar o mundo em que vivemos, não se observam os entes que nos rodeiam, não se abrem inquéritos acerca de sorte do povo. Queixava-se Bastiat (...) de que os jornais importantes de 1848 se agarravam exclusivamente à política militante e estéril dos partidos e se esqueciam de agitar as questões de fundo, as questões sociais. Eu dirijo a mesma queixa à imprensa e aos homens do nosso tempo".3

Pela Lei n. 2.040, de 28.9.1871, declaravam-se livres os filhos de mulher escrava. Mais tarde, em 15.3.1879, pela Lei n. 2.827, revogavam-se as leis de 1830 e 1837, regulando-se exaustivamente as locações de serviços na agricultura, já depois da Lei do Ventre Livre e como que preparando o país para a falta ou abolição do trabalho escravo. Fundavam-se, no Rio de Janeiro, a Liga Operária (1870) e a União Operária dos Trabalhadores do Arsenal de Marinha (1880), como tímidas manifestações do espírito associacionista urbano e reivindicador de certos trabalhadores livres.4

3. De 1890 a 1919 - É realmente com a abolição da escravatura e a Proclamação da República (1889) que começa a mudar o quadro econômico-social da Nação, e, com ele, como é natural, as leis que o devem regular. Pelo Decreto n. 213, de 22.2.1890, foram revogados os diplomas legais do Império sobre locação de serviços agrícolas e dos colonos. Em nada adiantou-se a nova Constituição, de 24.2.1891, à Carta Imperial de 1824. Proclamou, de modo geral, a garantia do direito de associação e reunião a todos os cidadãos (art. 72, § 24).5

A primeira lei de cunho realmente tutelar e trabalhista surgiu, porém, em 17.1.1891, constante do Decreto n. 1.313, do Marechal Deodoro, Chefe do Governo Provisório, proibindo no Distrito Federal o trabalho dos menores de 12 anos, salvo a título de aprendizado entre aquela idade e a de oito anos completos.6

Em 1893, pela Lei n. 173, de 10 de setembro, regulamentou-se o dispositivo constitucional sobre associações religiosas, morais, científicas, artísticas ou de simples recreio (art. 72, § 3º). Mas o primeiro diploma sobre sindicalização veio a surgir em 6 de janeiro de 1903, pela Lei n. 979, regulando a sindicalização rural. Essa chamada inversão sindical brasileira deveu-se a dois fatos: ser o Brasil um "país essencialmente agrícola" e necessitar, à época, de reorganizar o campo como consequência da Lei Áurea de 1888. Facultou-se, assim, aos profissionais de agricultura e

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indústria rurais de qualquer gênero organizarem-se em sindicatos para estudo, custeio e defesa de suas terras. Tinha-se mais em vista um objetivo econômico, servindo as associações de intermediárias de crédito, do que propriamente cuidar de interesses profissionais.

Vários foram os projetos apresentados nas Casas do Congresso sobre matérias de trabalho. Em 5.1.1905 foi promulgado o Decreto n. 1.150, dando crédito privilegiado aos salários dos trabalhadores agrícolas. Em 5.1.1907, do projeto de autoria do deputado Inácio Tosta resultou o Decreto n. 1.637, regulando de forma geral a sindicalização, nos campos e na cidade, abrangendo todas as profissões, com inspiração direta na lei francesa de 1884. Lei precursora, liberal, não encontrou meios nem ambiente para ser aplicada entre nós.

Quando da discussão das primeiras tentativas para a promulgação do Código Civil, em 1892, agitou-se o operariado procurando melhorar suas condições de vida. Realizando um congresso no Rio de Janeiro, estiveram os trabalhadores com o ministro Lúcio de Mendonça, do Supremo Tribunal Federal. Aconselhados por aquele magistrado, lutaram por introduzir dispositivos especiais e protetores no projeto da lei civil. Apesar dos esforços de Clóvis Beviláqua, quando da promulgação do novo Código pela Lei n. 3.071, de 1º.1.1916, pobre era o novo diploma legal, atrasado mesmo para a época. Inclui o homestead (bem de família) nos arts. 70 a 73, regulando a locação de serviços (ainda com esse nome em 1916!) dos arts. 1.216 ao 1.236.7

Em 1896, vetava o então presidente da República em exercício, Manuel Victorino Pereira, um projeto de lei regulando o trabalho agrícola, com esses argumentos próprios do liberalismo econômico e jurídico da época, verdadeiramente antológicos: "Nas sociedades civilizadas a atividade humana se exerce em quase todas as suas formas sob o regime do contrato. Intervir o Estado na formação dos contratos é restringir a liberdade dos contratantes, é ferir a liberdade e a atividade individual nas suas mais elevadas e constantes manifestações, é limitar o livre exercício de todas as profissões, garantida em toda a sua plenitude pelo art. 72, § 24, da Constituição".

O papel do Estado nos regimes livres é assistir como simples espectador à formação dos contratos e intervir para assegurar os efeitos e as consequências dos contratos livremente realizados. Por essa forma, o Estado não limita, não diminui, mas amplia a ação da liberdade e de atividade individual, garantindo os seus efeitos.

Voltando novamente a ser apresentado o mesmo projeto, foi dessa vez derrotado no Senado, em 1898, sob o comando de Rui Barbosa, também com estes argumentos liberais do tempo, hoje românticos e utópicos, porque irreais: "Deve ser votado hoje no Senado o projeto regulando a locação do serviço agrícola. Somos por princípio avessos a toda a regulamentação de serviços de qualquer ordem. Há nela sempre uma diminuição da liberdade individual, um constrangimento incompatível com o...

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