A Eficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações de Trabalho

AutorTereza Aparecida Asta Gemignani - Daniel Gemignani
Ocupação do AutorDesembargadora do Tribunal Regional do Trabalho de Campinas - Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)
Páginas119-132

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"Ora, as mudanças econômicas tornaram necessário fazer circular os efeitos do poder por canais cada vez mais sutis, chegando até os próprios

indivíduos, seus corpos, seus gestos, cada um de seus desempenhos cotidianos. Que o poder, mesmo tendo uma multiplicidade de homens a gerir, seja tão eficaz quanto se ele se exercesse sobre um só."

Michel Foucault. Microfísica do poder.

9.1. Introdução

Uma das características mais expressivas da pós-modernidade, que marca a época contemporânea, é a intensificação das relações de poder entre os particulares. A resistência a um modelo de poder centralizado, a fragilidade das instituições e o sistemático descumprimento da lei, por desacreditar em seus efeitos isonômicos, tem acentuado as disputas de poder nas relações privadas.

Essa nova realidade fática vem revelando o anacronismo de nossas instituições jurídicas, edificadas sob notória influência do sistema europeu continental, baseado na supremacia da lei, produto do Parlamento, que serviu de sustentação para o modelo positivista169.

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A efervescência econômica e social, que foi se intensificando durante o decorrer do século XX, veio evidenciar que a lei não se mostrava suficiente para apontar soluções aos novos conflitos, que se apresentavam cada vez mais complexos.

A par disso, nosso sistema constitucional passou a desatrelar-se dos modelos estrangeiros, apresentando traços de maturidade ao atentar para as peculiaridades de nossa cultura e nossos valores, para as particularidades de nossa evolução jurídica.

Tais questionamentos se acentuaram com a promulgação da Constituição Federal de 1988, em decorrência da inserção em seu art. 7º dos direitos trabalhistas como fundamentais, dando ensejo à formulação doutrinária que garante a possibilidade de exercê-los em face do Estado.

Entretanto, esse equacionamento tem se mostrado insuficiente para oferecer resposta aos novos conflitos, marcados principalmente pelas relações de poder entre os particulares, fenômeno que se espraia por todos os segmentos da sociedade, como bem observou Michel Foucault170, ao defini-lo como o exercício de uma microfísica do poder, chamando atenção para o fato de que o "grande jogo da história será de quem se apoderar das regras, de quem tomar o lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfarçar para pervertê-las, utilizá-las ao inverso e voltá-las contra aqueles que as tinham imposto, de quem, se introduzindo no aparelho complexo, o fizer funcionar de tal modo que os dominadores encontrar-se-ão dominados por suas próprias regras".

A questão se revela mais grave quando há relações assimétricas, em que as partes envolvidas ostentam notória disparidade de forças, como ocorre nas relações de trabalho.

É nesse contexto que o presente capítulo se propõe a examinar a questão da eficácia dos direitos fundamentais nas relações de trabalho entre particulares171.

9.2. Admirável mundo novo

Quando apregoou aos quatro cantos que a tecnologia seria uma aliada importante na redução do tempo de trabalho e ampliação dos períodos de lazer, Domenico de Masi172 conquistou corações e mentes. Argumentou que chegara o momento do ócio criativo, em que "na sociedade impõem-se novos sujeitos, a indústria e até o trabalho perdem sua importância central, o tempo destinado à formação, aos cuidados consigo e à folga prevalece claramente sobre o tempo destinado ao trabalho". Então poderíamos trabalhar apenas 3 a 4 horas por dia com a mesma produtividade das 8 horas habituais e reservar um período maior para o lazer?

Apesar das boas intenções, o conhecido sociólogo não logrou comprovar suas ideias.

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Pelo contrário.

Logo descobrimos que a tecnologia na verdade nos trazia uma carga maior de atribuições e, ao invés das 8 horas, passamos a trabalhar muito mais.

Mas não é só.

Deixou de existir a distinção entre os tempos de trabalho e os tempos da vida privada, os tempos de atividade e os tempos de descanso.

Tudo ficou misturado e muito mais controlado.

O empregado passou a ser parte do sistema, passível de ser "acessado" a qualquer hora, independentemente do período estipulado no contrato de trabalho. Além disso, diferentemente do apregoado por Domenico de Masi, volta a ser considerado apenas peça de uma engrenagem, e de maneira muito mais perversa e abrangente. Com efeito, enquanto nos primórdios do século passado esta engrenagem estava fixada num determinado espaço físico, e o trabalhador dela se libertava quando encerrava o expediente e as portas se fechavam, hoje ela tem existência virtual e, como tal, não para nunca, não fecha as portas, embora mantenha o velho esquema de limitar sua atuação a espaços compartimentalizados, sem ter a noção do conjunto, para que não haja a menor possibilidade de ocorrer perda de controle. Charlie Chaplin173 certamente ficaria surpreso ao descobrir que, apesar dos grandes avanços tecnológicos, os apertadores de parafuso e a velha bancada estão de volta, com a agravante de que agora não são os movimentos, mas a própria linha de produção que passa a acompanhá-lo para todo lugar, virtualmente, ampliando os espaços de sujeição.

Depois do taylorismo, do toyotismo, do just in time, o velho fordismo está de volta!

Repaginado, é verdade. Mas com o mesmo espírito usurpador da liberdade.

Só que muito mais intenso

Usa-se tecnologia de ponta. Mas as condições de vida no trabalho pioraram.

Retrocedemos.

E, o que é pior, de forma sub-reptícia, o que dificulta a compreensão do processo e impede a reação, pois, ao invés de empregados, o sistema agora trata de colaboradores.

Colaborador é parceiro. Parceiro não se insurge contra outro parceiro, porque a estratégia da palavra os coloca lado a lado, na mesma trincheira, supostamente com o mesmo objetivo.

É esta realidade fática que revela a importância de abordar a questão da eficácia dos direitos fundamentais entre os particulares, exigindo a análise de sua funcionalidade, notadamente quando os espaços de poder se ampliam, como vem ocorrendo nas relações de trabalho.

Com efeito, quando são quebradas as fronteiras entre a vida laboral e a vida privada, garantir os direitos fundamentais é criar muros de contenção e resistência, que visam impedir a precarização das condições de vida, fazendo valer a efetividade da Constituição, mesmo quando há inoperância do poder legiferante na promulgação das normas infraconstitucionais.

É uma situação cuja abordagem se reveste de significativa importância no mundo do trabalho, pois ao prestá-lo o trabalhador se coloca inteiro como pessoa, limitando seus espaços de liberdade.

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Nesse contexto, manejar direitos fundamentais só em face do Estado se torna insuficiente. O marco normativo só terá eficácia se os direitos fundamentais puderem ser garantidos também nas relações entre particulares, preservando os patamares necessários para resguardar a pessoa daquele que trabalha174.

9.3. Direitos fundamentais

Os direitos fundamentais nasceram para garantir os interesses do cidadão em face do Estado, ante a disparidade de poder existente entre eles.

Porém, conforme explica Virgílio Afonso da Silva175, esta "visão limitada provou-se rapidamente insuficiente, pois se percebeu que, sobretudo em países democráticos, nem sempre é o Estado que significa a maior ameaça aos particulares, mas sim outros particulares, especialmente aqueles dotados de algum poder social ou econômico".

As relações de trabalho, marcadas pela assimetria de poder entre as partes envolvidas no conflito, vem se apresentando como um campo fértil para debater a questão, notadamente após a promulgação da Carta Constitucional de 1988, que incluiu em seu art. 7º um extenso rol de direitos trabalhistas como fundamentais.

Tal ocorre porque é impossível haver prestação de trabalho sem envolvimento e comprometimento da pessoa do trabalhador. Assim, ao ingressar numa relação de trabalho, além de trazer consigo todos os direitos fundamentais inerentes à condição de pessoa, agrega os que a lei lhe garante como trabalhador, o que vai repercutir não só na execução do próprio contrato mas até mesmo na organização empresarial.

9.4. Direitos fundamentais trabalhistas

O art. 7º da CF/88 listou uma série significativa de direitos fundamentais trabalhistas, criando a ossatura institucional que não só vai sustentar o corpo legal infraconstitucional, como definir parâmetros decisórios para as situações-limite.

Neste trabalho pretendemos focar a análise na eficácia dos direitos fundamentais entre os particulares na tormentosa questão das dispensas coletivas.

O direito ao emprego sempre esteve no centro do debate das questões trabalhistas. Abolida a escravidão, o trabalho passou a ser valorizado como meio lícito para garantir a subsistência, abrindo

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caminho para o reconhecimento da dignidade daquele que trabalha. A edição de um corpo legislativo, inicialmente de forma esparsa, e posteriormente através de uma consolidação, passou a reconhecer o valor jurídico desta configuração, fundada no trabalho como direito de cidadania, assim evoluindo para sua constitucionalização176.

A questão tem voltado ao centro dos debates sob uma nova ótica, agora pela perspectiva dos direitos fundamentais, por se constatar que não adianta albergar um extenso elenco de direitos individuais se não for garantido o direito ao trabalho. Assim sendo, a proteção da dignidade, almejada pelos direitos fundamentais, abarca não só garantias negativas mas também positivas, significando um facere que visa a promoção da cidadania.

Ao tratar da matéria, Canotilho177 destaca que a teleologia da Constituição aponta para uma eficácia horizontal dos direitos fundamentais, por estarem atrelados à...

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