O sócio incapaz (CC, art. 974, § 3°)

AutorErasmo Valladao A. - N. Franca - Marcelo Vieira Von Adamek
Páginas112-126

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1. Introdução

Em Io de abril de 2011, azada1 coincidência, foi promulgada a Lei n. 12.399 que pretendeu disciplinar o registro de contratos e alterações contratuais de sociedades de que participem incapazes e, para isso, acrescentou novo parágrafo (§ 3o) ao art. 974 do Código Civil. Ao fazê-lo, porém, interferiu na disciplina do instituto que, após longo e paulatino desenvolvimento, e malgrado a ausência de expressa regra legal, tinha a sua inteligência sedimentada na doutrina, na jurisprudência e até perante os órgãos de registros públicos, para o bem ou para o mal. Receia-se, diante do imperfeito texto legal, que exegeses novidadeiras, como as que soem despontar juntamente com leis novas, possam turbar a compreensão do instituto, sensível para as relações societárias. Julgamos oportuno, por isso, tecer nesta altura algumas breves considerações.

2. O sócio incapaz; breve retrospecto

A sociedade tem origem em negócio jurídico (CC, art. 961) e pressupõe de regra agente capaz (CC, art. 104, I). É compreensível, diante disso, que a participação em sociedades de menores e interditos (CC, arts. 3o e 4o) tenha suscitado controvérsias no meio jurídico.

Entre nós, essas discussões remontam ao Código Comercial de 1850 que, ao regular as consequências jurídicas decorrentes da morte do sócio, proibiu expressamente o ingresso de menores na condição de sucessores do falecido, in verbis: "quando a sociedade dissolvida por morte de um dos sócios tiver de continuar com os herdeiros do falecido (art. 335, n. 4), se entre os herdeiros algum ou alguns forem menores, estes não poderão ter parte nela, ainda que sejam autorizados judicialmente; salvo sendo legitimamente emancipados" (CCom, art. 308). A aplicação linear desta

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regra às sociedades solidárias previstas no Código Comercial não causava à época maiores dificuldades ou, pelo menos, encontrava nas regras de responsabilidade ilimitada dos sócios a justificativa suficiente.

Este quadro de tranquilidade exegética, porém, alterou-se profundamente com o surgimento e a rápida proliferação das sociedades por quotas de responsabilidade limitada (reguladas originariamente entre nós pelas regras do Decreto n. 3.708, de 10 de janeiro de 1919), as quais colocaram à consideração dos aplicadores da lei novos e sensíveis problemas, a exigirem também novo equa-cionamento. Com efeito, a transposição reta da drástica solução do Código Comercial para o âmbito de uma sociedade que oferecia o benefício da limitação de responsabilidade, em muitos casos, longe de beneficiar o incapaz, os sócios remanescentes ou a sociedade, poderia inviabilizar a organização societária, privando os sócios e os sucessores dos ganhos propiciados pelo exercício em comum da atividade social. O que fazer? Liquidar as quotas do sócio falecido? Ou admitir os herdeiros menores?

Parte da doutrina pátria de então, congregando nomes de peso, defendeu a não aplicação do art. 308 do Código Comercial aos sócios de sociedades por quotas de responsabilidade limitada, do mesmo modo como essa restrição já então também não se aplicava às sociedades anônimas, porquanto numa e noutra sociedade a responsabilidade dos sócios era limitada.2 Argumentou-se, ade-mais, que tais sociedades regular-se-iam por lei especial e a elas não se aplicariam, senão supletivamente, o Código Comercial, sendo que, em matéria de dissolução, a lei especial teria disciplina própria. Outros estudiosos, de não menos envergadura, insurgiram-se contra essa solução, objetando que a sociedade por quotas de responsabilidade limitada era sociedade de pessoas e, portanto, se sujeitava também ao Código Comercial, especificamente ao seu art. 308; além disso, colocou-se em evidência que, de um lado, não poderia o menor exercer cargos em órgãos sociais, para os quais se exigiria plena capacidade de agir, especialmente no exercício de poderes de representação orgânica, e, de outro, mesmo havendo regra geral de limitação de responsabilidade, a própria lei de regência ressalvava que todos os sócios eram solidariamente responsáveis pela integralização do capital social, de tal modo que, nesta medida, ficaria o menor exposto a responsabilidades adicionais, o que não se poderia admitir.3

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A estas fundadas objeções, procurou-se responder que as posições de administrador e sócio são distintas, bastando então que o menor não exercesse cargo aquele cargo; além disso, para obviar o risco de expô-lo a responsabilidades adicionais pelo que faltasse para a integralização do capital, seria então simplesmente de exigir-se que o capital social estivesse, quando do seu ingresso, e se mantivesse, enquanto sócio fosse, totalmente integralizado, inclusive quando daefetivação de ulteriores aumentos de capital.

Nestes termos, colocou-se a controvérsia na doutrina e, instado finalmente a se pronunciar sobre ela, o Supremo Tribunal Federal a dirimiu e legitimou não só o ingresso causa mortis de menores (e, por extensão, de incapazes em geral) senão também até o ingresso por ato inter vivos,4 inclusive já no ato de constituição da sociedade. Destarte, ao cabo de longo e intenso debate, prevaleceu o entendimento - proclamado e, ao depois, regulado pelo Departamento Nacional do Registro do Comércio (DNRC)5 - de que incapazes poderiam ser sócios de sociedades por quotas por responsabilidade limitada, desde que não viessem a exercer a administração e o capital social estivesse totalmente integralizado, e assim se mantivesse nos futuros aumentos de capital.

Este entendimento pacificou-se. Tanto que, com o advento do Código Civil de 2002 (que silenciou por completo a respeito da controvérsia), a participação de incapazes em sociedades limitadas, observados os condicionantes antes referidos (e, para parte da doutrina, com a adicional exigência de que o capital social não seja integralizado com bens, como adiante se verá), continuou a ser iterativamente seguida no direito pátrio.6

A admissão da participação de menores e incapazes como sócios de responsabilidade limitada, esclareça-se, não constitui exotismo do legislador pátrio. Com maior ou menor largueza e variações, isso é previsto na generalidade dos sistemas jurídicos continentais. Em alguns países, o ingresso em sociedade limitada é aceito, desde que observadas as regras de representação legal.7 Noutros (como

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em Portugal8 e na Itália9), indo-se além, admite-se que, amparada em autorização judicial, haja a participação de menores e incapazes até como sócios de responsabilidade ilimitada (em sociedades em nome coletivo ou, como comanditados, em sociedades em comandita, simples ou por ações). Por fim, noutros (como na Alemanha) é necessária autorização judicial para o incapaz participar de qualquer organização societária de fins econômicos.10

De toda forma, o que não existe em nenhum dos sistemas legais citados - e, isto sim, constituiria autêntica esdruxularia jurídica - é a possibilidade de o incapaz, independentemente de autorização judicial e por efeito de simples ato de seu representante legal, assumir a posição de sócio de responsabilidade ilimitada, expondo plenamente o seu patrimônio aos riscos da atividade social.

Como quer que seja, embora o tema, desde o julgamento do Supremo Tribunal Federal acima referido, estivesse pacificado na doutrina e na jurisprudência e, portanto, a despeito de não reinar nos tribunais controvérsia relevante a clamar pela intromissão legislativa, sobreveio a Lei 12.399/2011 a interferir na disciplina do instituto, fazendo-o através da inserção de um novo parágrafo no art. 974 do Código Civil.

3. O novo § 3o do art 974 do CC

O novo parágrafo (§ 3o), acrescentado ao art. 974 do Código Civil pela Lei n. 12.399/2011, é do seguinte teor: "§ 3o. O Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas Comerciais deverá registrar contratos ou alterações contratuais de sociedade que envolva sócio incapaz, desde que atendidos, de forma conjunta, os seguintes pressupostos: I - o sócio incapaz não pode exercer a administração da sociedade; II - o capital social deve ser totalmente integra-lizado; III - o sócio relativamente incapaz deve ser assistido e o absolutamente incapaz deve ser representado por seus representantes legais".11

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A fonte de inspiração do legislador foi, sem dúvida, a (hoje revogada) Instrução Normativa n. 29, de 18 de abril de 1991, do Departamento Nacional do Registro do Comércio, que em seu art. 17 assim dispunha: "Art. 17.O arquivamento de atos de sociedades por quotas de responsabilidade limitada, da qual participem menores, será procedido pelo órgão de registro, desde que: I - o capital da sociedade esteja totalmente integralizado, tanto na constituição, como nas alterações contratuais; II - não seja atribuído ao menor quaisquer poderes de gerência ou administração; III - o sócio menor seja representado ou assistido, conforme o caso". A regra administrativa, como se observa, reportava-se especificamente a um tipo societário; alegal, nem isso fez.

3. 1 Técnica legislativa

Tal como estruturada, a nova regra não atende à melhor técnica legislativa: o local em que foi inserida e a forma com que foi redigida são, só por si, criticáveis.

De fato, o art. 974 do Código Civil encontra-se dentro do Título I do Livro II, do Código Civil, voltado à disciplina da capacidade do empresário; mais especificamente, trata da situação do empresário individual incapaz, criando, a título excepcional e apenas para este caso no direito brasileiro, a limitação da responsabilidade para a pessoa natural...

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