Acórdão

Páginas121-178

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Recurso Ordinário

TRT 15ª Região — 6ª Turma — 11ª Câmara

Processo n. 0001117-52.2011.5.15.0081

Recorrente: Usina Santa Fé S.A.

Recorrido: Ministério Público do Trabalho — PRT/15ª Região

Origem: Vara do Trabalho de Matão

Juiz Sentenciante: Renato da Fonseca Janon

Ementa: “Ação coletiva. Interesse individual homogêneo. Legitimidade ativa do Ministério Público do Trabalho. Cortador de cana. Pagamento por produção. Proibição. Singularidade da atividade. Possibilidade. Respeito à dignidade da pessoa humana e ao valor social do trabalho. 1. O Ministério Público do Trabalho, como é cediço, possui legitimidade para tutelar interesses individuais homogêneos, além, obviamente, dos difusos e dos coletivos. 2. In casu, não há de se falar em interesse individual heterogêneo, tal como pretende a reclamada. O fato de todos os trabalhadores serem cortadores de cana e receberem por produção configura, indubitavelmente, a origem comum apta a ensejar a aplicação do art. 81, parágrafo único, inc. III, do Código de Defesa do Consumidor. O que se pretende, na verdade, é conferir nova nomenclatura a instituto já definido pelo referido dispositivo legal. 3. A proibição do pagamento por produção, no caso específico dos cortadores de cana, é medida impeditiva de retrocesso social. Como é sabido, nesse caso existe um estímulo financeiro capaz de levar o trabalhador aos seus limites físicos e mentais para que, mesmo assim, aufira salário mensal aviltante e incapaz de suprir as necessidades básicas próprias e as de sua família. 4. Não se deve concluir pela proibição do pagamento por produção para todas as profissões, mas tão somente para aquelas cujas peculiaridades as tornem penosas, degradantes e degenerativas do ser humano. É o caso dos cortadores de cana, embora não exclusivamente. 5. Deve-se entender, de uma vez por todas, que o cor-

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tador de cana remunerado por produção não trabalha a mais porque assim deseja. Muito pelo contrário: ele trabalha a mais, chegando a morrer nos canaviais, unicamente porque precisa. Sua liberdade de escolha, aqui, é flagrantemente tolhida pela sua necessidade de sobreviver e prover sua família. 6. A dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho, Fundamentos da República Federativa do Brasil, devem impedir a manutenção de uma situação que remonta aos abusos cometidos durante a 1ª Revolução Industrial, de modo que a coisificação do ser humano que trabalha nos canaviais é realidade que não se admite há muito tempo.”

Inconformada com a r. sentença de fls. 1.418/1.529, recorre a reclamada (fls.
1.538/1.551).

Em suas razões de recurso ordinário, alega, preliminarmente, que o feito deve ser extinto sem resolução de mérito, haja vista eventual ilegitimidade ativa do órgão ministerial para tutelar suposto direito individual heterogêneo. No mérito, sustenta que o pagamento por produção é autorizado pela lei, de modo que o Poder Judiciário equivocou-se ao proferir sentença proibindo a reclamada de remunerar seus empregados por unidade produzida. Por derradeiro, alega que a imposição de multa em caso de desobedecimento da obrigação de não fazer imposta judicialmente não encontra amparo legal e, se mantida, acarretará enriquecimento ilícito do recorrido.

O Ministério Público do Trabalho, por intermédio de seu digno representante, Dr. Rafael de Araújo Gomes, contrapôs-se aos argumentos apresentados, concluindo pela necessidade de manutenção da r. sentença proferida (fls. 1.559/1.564).

É o relatório.

Admissibilidade

Conheço do recurso interposto porque presentes os requisitos de admissibilidade.

Das preliminares arguidas pela reclamada

Em suas razões de recurso ordinário, a reclamada esforçou-se por demonstrar, por intermédio de preliminares e prejudiciais, que o mérito da questão não deve ser julgado. Basta, para tanto, notar o quão extensa foi sua argumentação no que toca à tentativa de convencer este E. TRT a acatar alguma das inúmeras preliminares arguidas.

De maneira geral, alegou que o tema envolvendo o pagamento por unidade de produção, especificamente no caso dos cortadores de cana-de-açúcar, diz respeito a típico interesse individual heterogêneo, o que afasta a legitimidade de atuação do órgão ministerial. Aliado a isso, sustentou que a Ação Civil Pública julgada procedente pelo magistrado de 1ª Instância carece de objeto, haja vista a tomada de compromisso de ajustamento de conduta às previsões legais perante o Ministério Público do Trabalho. Por fim, construiu fundamentação no sentido de demonstrar que o pagamento por produção é permitido pela legislação em vigor, de modo que a r. sentença feriu o princípio da legalidade.

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Em síntese, esses foram os argumentos apresentados pela reclamada, muito embora estejam eles apresentados em diversos tópicos que, de uma maneira ou de outra, repetem-se sucessivamente.

A despeito de a r. sentença proferida ter enfrentado todos os óbices de mérito apresentados, utilizando-se de persuasão racional refinada e precisa — com a qual concordo plenamente, a importância jurídica e social da causa, e também o dever, impulsiona a análise, ainda que breve, dos pontos obstativos apresentados pela reclamada.

Eis, então, os fundamentos.

Da perda de objeto da ação

Como primeiro ponto, a reclamada alega que a ação que ensejou a presente discussão perdeu o objeto, sendo inaplicáveis os fundamentos da sentença. Afirma, a fim de justificar sua defesa, que os trabalhadores possuem condições dignas de trabalho, mormente com a assinatura, sem resistência, do TAC proposto pelo Ministério Público do Trabalho.

Prima facie, afasto a preliminar apresentada, de modo que não assiste razão à reclamada.

Da ata de audiência realizada na sede da PTM Araraquara, f. 720, constou expressamente, item 3, que a ação prosseguiria com relação ao pedido referido no item 8, letra “e”, para julgamento de mérito, não sendo abrangido por conciliação ou desistência. Portanto, beira à má-fé a alegação da ré.

Ora, se a Ação Civil Pública que originou a presente discussão tivesse perdido seu objeto, a reclamada não se esforçaria para demonstrar que o pagamento por unidade de produção é legal. Isso porque o único e exclusivo objeto da ação ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho foi impedir o pagamento por produção dos cortadores de cana que laboram para a reclamada.

Os fundamentos apresentados pela reclamada, nesse tópico especificamente considerado, apresentam inegável deficiência técnico-processual, pois afirmar que a Ação Civil Pública perdeu o objeto seria exatamente o mesmo que reconhecer a procedência do pedido formulado pelo órgão ministerial. Isso tudo em termos práticos, obviamente.

Nessa cadência, a perda do objeto ocorreria se a reclamada afirmasse não mais remunerar seus empregados em razão da quantidade produzida. Evidentemente que a pretensão resistida, apta a justificar a atuação ministerial, ainda perdura.

Não fosse assim e a reclamada teria aderido, de maneira integral, ao termo de compromisso de ajustamento de conduta proposto pelo Ministério Público do Trabalho, o qual combatia a famigerada prática de pagamento por produção aos cortadores de cana.

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Já que não aquiesceu, em âmbito extrajudicial, em se abster de remunerar seus empregados em razão da produção aferida, a ação coletiva foi ajuizada como única maneira de pacificar o ponto conflitivo restante.

Sendo assim, por óbvio, não há que se falar em perda do objeto da ação civil pública que ensejou o atingimento do presente momento processual, de modo que afasto a primeira preliminar.

Da ilegitimidade ativa do Ministério Público

Em segundo lugar, a reclamada afirma que o interesse envolvido no presente caso é evidentemente heterogêneo, cuja consequência processual é o afastamento da legitimi-dade de atuação do Ministério Público do Trabalho. Argui, assim, que não existe origem comum que una os trabalhadores, pois a situação de cada um deles deve ser analisada individualmente.

Primeiramente, consigne-se que, na hipótese vertente, o Ministério Público do Trabalho pediu e obteve, em face da recorrente, a condenação para se abster de remunerar seus empregados, envolvidos na atividade de corte manual de cana-de-açúcar, por unidade de produção, sob pena de multa de R$ 1.500,00 (mil e quinhentos reais) por trabalhador atingido, a cada mês em que se verificar o descumprimento.

Assim, luzidio que se trata de tutela de interesses difusos, não havendo a determinação dos sujeitos atingidos, pois os atuais e futuros empregados serão beneficiados com a proteção do bem maior que é a saúde e a vida.

Efetivamente, não se pretendeu e não se obteve, em face da recorrente, nesta Ação Civil Pública o pagamento de reparações pecuniárias individuais, para satisfazer determinados empregados, mas o cumprimento da obrigação de não fazer, a fim de sanar de forma coletiva e indivisível, a prática funesta do pagamento por produção.

Tratando-se da defesa de interesses coletivos e difusos, adequado se mostra o uso da Ação Civil Pública, nos termos da Lei n. 7.347/85, art. 1º, IV, c.c. com art. 129, III, da Constituição Federal e art. 83, III, da Lei Complementar n. 5/93.

Ainda que não se tratasse de...

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