Compensação Não é Proteção

AutorArion Sayão Romita
Ocupação do AutorAcademia Nacional do Direito do Trabalho
Páginas445-456

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4.1. Generalidades

Segundo a opinião doutrinária praticamente unânime no Brasil, o Direito do Trabalho protege o empregado. O princípio de proteção seria a viga mestra da disciplina, o fundamento que justificaria, por si só, sua própria existência. O Direito do Trabalho teria sido criado com o único propósito de dispensar proteção ao hipossuficiente econômico.

Esta visão teórica, na perspectiva histórica da evolução da disciplina ao longo do tempo, mostra-se hoje inteiramente anacrônica. Ela se justificava no momento inicial, quando a legislação trabalhista era aplicada apenas aos operários, trabalhadores manuais. O nome da disciplina era Direito Operário. A partir do instante em que ele passou a ser Direito do Trabalho, aplicando-se a todos os assalariados que prestam trabalho subordinado, o conceito de hipossuficiência também ficou superado. Hipossuficiente reclama proteção, mas quem deixa de ser hipossuficiente dela não precisa.

Cabe lembrar que o Direito do Trabalho se aplica aos chamados altos empregados e até a diretores de sociedades anônimas, que positivamente não se enquadram no conceito sociopolítico (não jurídico) de hipossuficiência.

Se a proteção é compatível com a noção de hipossuficiência, desaparecida esta, aquela perde a razão de ser. Sublata causa, tollitur efectum.

Sequer se faz necessário, aqui, recordar a função ideológica desempenhada pelo atributo protetor, aplicado ao Direito do Trabalho, porque ele se presta, de forma quase nunca explicitada, a fundamentar o julgamento, pela procedência, de postulações judiciais claramente destituídas de razão.

4.2. A lição de Georges Scelle

Em 1927, Georges Scelle, que já havia publicado, em 1922, um livro sobre o Direito Operário1, lançou seu Précis elémentaire de législation industrielle, em cuja conclusão escreve: "A legislação do trabalho apresenta uma forma transacional. Ela conduz a um duplo compromisso: entre duas forças coletivas, a do capitalismo privilegiado e a da massa de trabalhadores

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assalariados; entre duas tendências doutrinárias econômico-jurídicas, a do individualismo ou da autonomia da vontade e a do intervencionismo ou do estatuto legal. O intervencionismo aparece como um meio de realização, e não como um fim ideal. A legislação do trabalho corresponde a uma época de transição. O que apresenta de inacabado e de instável provém do jogo contínuo de ações e reações do meio em que é elaborada. O sentido imutável de sua evolução pressagia contudo a vitória da democracia social e o desaparecimento, sem dúvida ainda longínquo, do regime do salariato"2.

Estas palavras proféticas não escamoteiam a característica de "legislação de compromisso", que o autor atribui ao direito do trabalho: compromisso entre as forças do capital e as da massa de trabalhadores subordinados. Não se pensa em "proteger" esta "massa de trabalhadores". Quem fala em compromisso, pensa em transação: o próprio autor alude à "forma transacional" que a legislação do trabalho apresenta.

A justificativa dessa visão doutrinária é desenvolvida adiante, na mesma etapa conclusiva de sua obra, por Scelle: "No começo encontramo-nos em presença de uma concepção autoritária da organização do trabalho: a corporação estreita e imobilizada do antigo regime, o patrão autocrata e proprietário do código civil. Após o estágio intermediário do estatuto legal e da intervenção legislativa, entrevemos o advento de uma regulamentação competente, técnica, autônoma da produção, baseada no concurso e no acordo de seus fatores essenciais: o capital, a força de trabalho, a ciência técnica. A lei unilateral do empregador ou do Parlamento se transforma, pelo contrato coletivo e pelas organizações paritárias, em lei convencional que emana dos próprios interessados, poder-se-ia dizer em governo direto e democrático da produção"3.

Em resumo: no começo, foi a lei do patrão, em seguida, a regulação por via legislativa; finalmente, o contrato coletivo de trabalho.

Nesta evolução, o elemento "proteção", que poderia encontrar justificativa no instante inicial (o da lei do patrão), perde substância, desaparece nas fases subsequentes.

O próprio Scelle, que considerava o direito do trabalho, em sua primeira etapa, um "direito de classe", assinala que ele, no correr do tempo, perde essa característica. Em suas palavras: "Dissemos, no começo deste livro, que a legislação operária constituía um direito de classe. Ora, sua extensão progressiva à grande maioria dos cidadãos ativos, incluídas as profissões liberais e os empregados do Estado, tende a lhe conferir sob uma nova forma as características de um "direito comum". Acelera, além disso, o movimento

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natural das democracias modernas no sentido da igualização das condições sociais, embora acabe por esfumar, a destruir em parte este espírito e esta própria noção de classe que teve em sua origem. A vida social tem destes paradoxos: o meio cria o direito; mas o direito, por sua vez, reage sobre o meio e o modela"4.

No "direito comum", que constitui a verdadeira feição do direito do trabalho após sua extensão à maioria dos cidadãos ativos, abandonada a característica de "direito de classe", não há espaço para a ideologia da proteção. O direito tem por função regular as relações jurídicas com o fito de igualar as condições sociais, convergindo para a instauração de uma lei convencional emanada dos próprios interessados. Tal lei convencional repele a ideia de proteção.

4.3. A lição de Gallart Folch

Alejandro Gallart Folch demonstrou, em 1936, que o direito do trabalho, superando a tradição liberal baseada na falsa igualdade (meramente formal) entre os sujeitos do contrato de trabalho, caracterizava-se por ser eminentemente desigual, porque "se propõe compensar com uma superioridade jurídica a inferioridade econômica do trabalhador"5.

Desta forma, com uma simples e despretensiosa frase, o autor fixava, para o futuro, a verdadeira característica da legislação do trabalho: compensatório. Ela compensa com uma superioridade jurídica a inferioridade econômica do trabalhador.

Diante de uma relação social marcada pela assimetria, na qual um dos sujeitos se encontra em posição de flagrante inferioridade socioeconômica perante o outro, o direito do trabalho simplesmente equilibra os pratos da balança, mediante a concessão ao sujeito mais fraco de vantagens e benefícios capazes de eliminar a inicial desigualdade, compensando assim com uma superioridade jurídica a inferioridade em que o trabalhador se encontra em face do empregador.

Esta superioridade compensatória nada tem de protecionista. Compensar não é proteger. Quem compensa não protege.

Compensação é um instituto de direito civil que representa um dos modos de extinção das obrigações. Reza o art. 358 do Código Civil, de 2002: "Se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem".

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Não cabe, aqui, descer a pormenores no exame técnico desse instituto típico do direito privado. Interessante, porém, é relembrar seu conceito genérico e seu fundamento, pela utilidade que revela no desenvolvimento do raciocínio. Como explica A. von Thur, "quando entre A e B existem dois créditos mútuos, presentes todos os requisitos da compensação, surge entre eles uma situação jurídica a que se dá o nome de compensabilidade. Desta situação jurídica nasce para cada parte uma possibilidade de compensação, classificada entre os direitos protestativos cancelatórios"6.

A compensação tem oportunidade de ser invocada quando duas pessoas reúnem as qualidades de credor e devedor, conjunta e reciprocamente, como escreve Clóvis Beviláqua7. O fundamento do instituto, segundo Roberto de Ruggiero, "é racional e claro". Quando duas pessoas são entre si credores e devedores recíprocos, injusto seria constranger ao cumprimento da obrigação o devedor que é, por sua vez, credor8.

O instituto da compensação foi concebido no direito romano, que entretanto não o admitia como modo legal de extinção das dívidas9. O espírito pragmático dos romanos, contudo, expressou em diferentes passagens o conteúdo, a função prática e o fundamento equitativo do instituto. Modestino escreveu: Compensatio est debiti et crediti inter se contributio - Compensação é a contribuição mútua do débito e do crédito10. Pompônio sentenciou: Ideo compensatio necessaria est, quia interest nostra potius non solvere quam solutum repetere - Por isso a compensação é necessária, pois nos interessa antes não pagar do que repetir o pagamento11. No dizer de Paulo: "Dolo facit qui petit quod redditurus est - Age com dolo quem pede o que deve dar12.

Pode-se, então, deixando de lado o tecnicismo do direito civil, reter o fundamento equitativo e de justiça da compensação, já demonstrado no exame das fontes romanas, para concluir, com os léxicos, que...

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