Características

AutorArion Sayão Romita
Ocupação do AutorAcademia Nacional do Direito do Trabalho
Páginas99-114

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7.1. Generalidades

A doutrina liberal atribui aos direitos da personalidade caracteres essenciais. Para a eficaz proteção da pessoa humana, tais direitos devem revestir-se de características especiais, a fim de impedir que o ordenamento jurídico deles despoje o respectivo titular. Por isso, os direitos da personalidade são intransmissíveis e inalienáveis. Eles constituem "direitos inatos (originários), absolutos, extrapatrimoniais, intransmissíveis, imprescritíveis, impenhoráveis, vitalícios, necessários e oponíveis erga omnes", segundo a lição de Carlos Alberto Bittar1. Esta noção encontra eco no direito positivo brasileiro: segundo disposto no art. 11 do Código Civil de 2002, "com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária" e remonta à Declaração dos Direitos do homem e do cidadão francesa, de 26 de agosto de 1789, cujo preâmbulo fala em "direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem" e cujo art. 2º alude aos "direitos naturais e imprescritíveis do homem", cuja preservação constituiria a finalidade de toda associação política.

Não se trata mais, porém, de fixar as características dos direitos do homem abstrato. Sem dúvida, os direitos da personalidade devem ser reconhecidos e resguardados pelo ordenamento positivo; contudo, em sede de direitos fundamentais, outras características devem ser pesquisadas, a fim de bem apreender sua essência e desenhar sua fisionomia.

A partir da observação das declarações internacionais, que poderia lastrear a criação de um Direito Internacional dos Direitos Fundamentais, podem ser identificadas características próprias, que esclarecem seu significado e orientam sua interpretação no sentido da obtenção de máxima eficácia.

7.2. Rejeição da inerência

Carlos Weis relaciona quatro características dos direitos humanos: inerência; universalidade; indivisibilidade e interdependência; e transnacio-

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nalidade2. Rejeitando a primeira característica por ele apontada (inerência), serão examinadas a seguir as demais: universalidade, interdependência e internacionalização. A estas características serão acrescentadas a historici-dade e a unidade.

Para Carlos Weis, a inerência constitui uma característica dos direitos humanos, porque eles decorrem do simples fato de sua existência e bem assim do fundamento jusnaturalista racional adotado pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos. Alude ao Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada em 1948, segundo o qual o reconhecimento da dignidade inerente a toda a família humana é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo. No entanto, o citado Preâmbulo não declara que os direitos fundamentais são inerentes à pessoa humana. O que é inerente é a dignidade, esta sim é o fundamento dos direitos fundamentais. O que se discute é se os direitos fundamentais são inerentes a cada pessoa. Não são: são um produto histórico.

A afirmação do caráter "inerente" dos direitos fundamentais não merece apoio. Os direitos fundamentais não são inerentes à pessoa humana e, por isso, a inerência não deve ser incluída entre as características dos direitos fundamentais.

Para amparar sua assertiva de que a inerência constitui característica dos direitos humanos, Carlos Weis prescinde do seu fundamento e a indica como o "pressuposto necessário para o desenvolvimento de um conjunto de regras que visam a condicionar a ação do Estado em benefício do interesse individual ou coletivo"3. Ora, ver na inerência "premissa racional para a construção da noção de direitos humanos" recai na tese iluminista que já desempenhou seu papel histórico, mas que já está superada. Serviu aos propósitos da fundação do Estado liberal, que já cedeu espaço ao Estado democrático de direito.

Acrescenta-se que o reconhecimento do caráter inerente dos direitos humanos permite a adaptação do ordenamento positivo, na medida em que se renova o entendimento a respeito do significado da "dignidade inerente a todos os membros da família humana". Com esta nova função, a inerência fortaleceria a noção de que o respeito a normas preestabelecidas preserva o indivíduo contra o poder estatal. O argumento impressiona, todavia, a defesa das prerrogativas do indivíduo contra o Estado, no atual estágio de evolução do conceito de direitos fundamentais, prescinde desta noção de cunho individualista e adequada apenas ao liberalismo político.

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O aspecto inerente dos direitos humanos também teria a virtude de revelar o "caráter não taxativo dos direitos humanos", já que tais direitos estão em constante mutação. Neste ponto a defesa da inerência como característica dos direitos humanos claudica, porque, se adequada aos direitos de proteção do indivíduo contra a prepotência do poder estatal, deixa ao desamparo o direito de exigir prestações positivas do Estado.

Afastada a primeira característica apontada (a inerência), cabe agora examinar as demais.

7.3. Universalidade

O caráter universal dos direitos fundamentais está implícito no jusnaturalismo racional do século XVIII: os direitos fundamentais (ou direitos do homem, segundo a nomenclatura da época) assistem a todos os homens, sem distinção de qualquer espécie. O art. 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, afirma que "todos os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos". Note-se: "todos os homens" vale dizer qualquer homem, independentemente de raça, nacionalidade etc. A declaração tem alcance universal, aplica-se indistintamente a todo e qualquer homem.

A partir desse texto primordial, os instrumentos internacionais de proclamação de direitos humanos ostentam vocação de universalidade, porque almejam abranger em seu raio de aplicação todos os seres humanos, sem qualquer distinção. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, emprega expressões como: "todas as pessoas" (art. 1º); "toda pessoa" (arts. 2º, 3º e 6º); "ninguém" (arts. 4º, 5º, 9º), e assim por diante.

A consciência de que todos os seres humanos são detentores de direitos não dependentes da vontade dos Estados ou dos particulares ganha vulto após a Segunda Guerra Mundial, superando-se a concepção estática própria do racionalismo imanentista característico do século XVIII. É certo que o conteúdo desses direitos não é invariável: depende das circunstâncias que distinguem umas sociedades das outras, porém, é certo que a existência de um mínimo de direitos é hoje reconhecida universalmente, a atestar o caráter de universalidade dos direitos fundamentais.

O projetado Direito Internacional dos Direitos Humanos4 apresenta inquestionável vocação de universalidade. Como capítulo especial do Direito Internacional Público e do Direito Constitucional Internacional, esta

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novel disciplina se constrói a partir da noção de que não só os Estados mas também os indivíduos (rectius: as pessoas) são sujeitos de Direito Internacional Público, como ensina Celso Albuquerque Mello5. A noção de direitos fundamentais adquire nova e mais extensa dimensão, pois, no dizer de Maurício Andreiuolo Rodrigues, "o seu panorama passou a ser universal, não cabendo mais limites de fronteira"6.

O caráter de universalidade dos direitos fundamentais é salientado pelo item 5º da Parte I da Declaração e Programa de Ação adotados pela Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, conhecida como Declaração de Viena, aprovada em 1993: "Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, independentes e inter-relacionados".

O universalismo dos direitos fundamentais, como observa Norberto Bobbio, foi uma lenta conquista. Na evolução histórica das declarações que preconizam a universalização, registram-se três fases: 1ª - a ideia surge na obra dos filósofos: as declarações nascem como teorias filosóficas; 2ª - passa-se da teoria à prática: o direito somente pensado evolve no sentido do direito realizado; 3ª - a afirmação dos direitos é, ao mesmo tempo, universal e positiva (fase iniciada com a Declaração de 1948)7. Na terceira fase, o caráter da universalidade alcança o ponto culminante quando, no item 1º, a Declaração de Viena afirma: "A natureza universal desses direitos e liberdades não pode ser questionada".

A observação dessa trajetória evolutiva dos direitos humanos enseja uma reflexão a propósito das diversas dimensões que os direitos fundamentais apresentam. A universalidade referida por Norberto Bobbio, na sucessão das fases históricas acima delineada, aplicar-se-ia inicialmente à concepção liberal, que preconiza a abstenção do Estado em face da esfera de atuação do indivíduo, considerado, abstratamente, fora do sentido concreto de existência, produto de mera formulação racional, fora do espaço e do tempo. A universalidade, portanto, não alcançaria os direitos sociais, abrangendo somente as liberdades negativas. Na fase em que os direitos humanos se tornam autênticos direitos positivos, ganham em concretização, mas perdem em universalidade: valem apenas quando consagrados pelo ordenamento interno do Estado que os reconhece. Somente na terceira fase, iniciada com a Declaração de 1948, os direitos humanos se tornam realmente universais,

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porque seus destinatários não são apenas os cidadãos de um ou outro Estado, não são limitados pelas fronteiras, mas alcançam "os cidadãos da cidade que não tem fronteiras, porque compreende toda a humanidade". Na expressiva síntese de Norberto Bobbio, "os direitos do homem nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais"8.

Considerada à luz da dignidade da...

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